sexta-feira, julho 28, 2006

A capitã e seu quarto – para tia Selma

Aprendeu
cada palmo
desta margem.

Em cada porto,
deixou saudades.

De cada porto,
trouxe
presentes,
fotografias...

Navegadora incansável,
deixou tudo
documentado:
álbuns
paralelos
meridianos
diários de bordo
mapas...

Capitã exigente,
jamais saiu
do rumo
que planejou
na sua bússola quieta.

(Dentro do seu navio
havia um relógio de pêndulo
que obedecia apesar
ao movimento do mar).

Afora ele,
tudo a capitã dominava!
Certamente!

E o navio era lindo,
todo enfeitado
de fitas
todo ornado
de laços!

(Dentro do navio,
dentro de uma caixa vermelha,
a capitã escondeu
a parte imprecisa
da vida;
dentro de uma caixa amarela,
aquele relógio
implacável
que marcava
uma hora
em que a capitã não cabia).

Sem descanso,
dia e noite,
teimou sua trilha:
engomava as velas
segurava o timão
norteava o leme
varria o convés
lavava o tombadilho...
Noite e dia...
Dia e noite...

Chegou, enfim, na outra margem!

Adivinha-se a viagem, o desembarque...

Com certeza
guardou detalhes
memorizou minúcias
que nos contará
quando chegarmos lá.

Agora não há pressa:
a capitã venceu
o relógio da caixa amarela;
apropriou-se
da quietude funda das âncoras;
ganhou
a paz demorada dos retratos
que tanto buscou.

O navio restou
inútil
como tudo que é belo!

Desembarcados,
conheceremos
a capitã descansada
perolada
na mais improvável
e bela concha.

domingo, julho 23, 2006

Damasco

Também
já houve em mim
usança de silêncio:
fui tarântula vã
que tecia o nada
no extravio da seda.

Concebia fendas
tecia grotas
arrenegava o fio
que me urdiria o ser.

Tarântula ou ostra:
engendrava a pérola
que se perdia
de guardada.

Mas me cansei de morrer.

Preciso ser tarântula
para compor
o tecido que me faz;
careço lavrar, na seda,
o desenho
que me cria.

Minha voz agora
me faz
me descortina
me lança
me mata
de ventura.

Porque nasci tarântula
nasci para tecer:
segrego a seda
e com ela
teias são tecidas.

Não importa
o indizível:
tanto urdirei
contra ele
que se estiolará.

Minha palavra
ou minha teia:
seda e vazio
que concebo
que me concebem
para além
de meu destino
de inseto.

sábado, julho 22, 2006

Vestida de sol – para Fred

I
Sei de paixões,
compreendi mistérios.

E como quem quer a Lua,
sendo sol,
minha busca de ti
é sempre,
incansável,
insaciada.

Minha prima ânsia,
selvageria de matas,
é de conhecer
em ti.

Porque não estranhaste
a marca
feita a fogo
entre meus seios.

Porque só a ti
quero alumbrar:
fiz-me sol
só para ti.

Mas tão fatigada...
cumpro destino...
teço estações,
noites, dias, anos, séculos
que se repetem,
igualmente,
me matando.

Não me sabia
desejada
antes de ti:
Era uma estrela
muito longe,
cujo fascínio
se escondia.

E quando me fiz sol,
só o pude,
porque foste luz
que incendiou
minha face,
meu corpo.

Minha aurora!

Só renasço
porque existes.

Fiz-me sol
por te querer
ajoelhado
diante do meu fascínio.

Fiz-me sol
por te querer
maravilhar –
inveja de teu fascínio.

E apesar de meu
incansado movimento
sabe que
todo o rodopio do Tempo,
faço-o
à tua volta.

Alma de minha alma!

E meu amor
se deve a que
o que me era diferença –
chaga que me queimava
de solidão –
encantou-o.

II
Somos dois solitários:
nem na mente
nem no corpo
cabe repartir.

Minha vontade
são duas;
não posso
querer sozinha:
e quero mais a ti
do que a mim.

E vejo pouco
porque só vejo a ti:
fonte de minha luz!

Nunca importou
minha pureza:
porém fui nascida
para ser perdida
em ti.

E se permaneço sol –
intocada –
é porque teu amor
resgata minha pureza.

Brilho, para mostrar
a todos
que sou amada;
brilho, como paga
por esta prenda:
mais te devo
do que posso
te dar.

segunda-feira, julho 17, 2006

Identidade e nacionalismo: des-construção

A questão da identidade nacional brasileira é difícil. Se, na Europa, esse tema se construiu sobre tradições populares ancestrais, no Brasil, por falta delas, ele foi, inicialmente, lapidado em cima de um passado inventado pelos escritores do Romantismo, de modo idealizado.
A conjunção harmoniosa de índios, negros e europeus, a sobreposição de valores, a construção do herói modelar, o triunfo do Bem são, na realidade, a repetição ingênua dessa identidade forjada e, portanto, falhada.
É nesse ponto que começa o “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, um livro que revela não só o engodo do projeto criado pelos escritores românticos, mas também a dificuldade de articulação de um conceito de identidade nacional do país.
Policarpo Quaresma é, antes de tudo, nacionalista. Ama o Brasil acima de si próprio e de si próprio abriu mão para viver em prol do engrandecimento da pátria. Estudou com afinco o país, acreditando piamente nos livros de sua biblioteca, que o narrador refere como romântica, e, cotidianamente, chega à repartição pública onde trabalha com uma excelência da geografia brasileira, comportamento ironizado pelos companheiros de trabalho. Longe da realidade, começa a construir projetos de brasilidade.
O primeiro, baseado em suas leituras, é montado sobre a cultura do índio, elemento usado no Romantismo como símbolo de identidade nacional, já que aqui estava ainda antes de o português chegar. Foi seu primeiro erro. Nem seus amigos compreenderam sua tentativa: Lima Barreto marca o “estranhamento” da conjunção cultural e ética proposta pelos escritores românticos, quando confrontada com a realidade. O hospício é a natural conseqüência.
Então Lima Barreto desiste de aproximar identidade nacional de identidade cultural e étnica, partindo para o engrandecimento da Pátria por meio de um projeto agrícola científico esfacelado pela realidade: saúvas, tiriricas, pragas, dificuldade de comercialização, oportunismo político, questões fundiárias... O segundo projeto queda frustrado também.
Policarpo não desiste. Seu terceiro plano é a esfera política, o centro das decisões: resolve, além de entregar a Floriano Peixoto um memorial cujo tema é a salvação nacional, engajar-se ao lado da ordem republicana contra a Revolta da Armada, que a ameaçava. Não via ele que a República amordaçava o povo com a morte quando esse se rebelava contra a marginalização de que era vítima.
No entanto, essa realidade era tão forte que, por maior que fosse o sonho de Policarpo, ela terminou por vir à tona: a ordem republicana vitoriosa, indiscriminadamente, pune a todos que ousam discordar dela e, de tão arbitrária, alcançou Policarpo, que a defendia. Seu terceiro projeto foi atropelado pela realidade.
Pobre Policarpo Quixote Quaresma! Na sua trajetória, foi obrigado a ver as feridas e as mazelas brasileiras, seu conceito idealizado de Pátria morreu com ele. E, agora, o que é Nacionalismo?
Lima Barreto, simbolicamente, aponta as engrenagens da História: Pátria, ao fim e ao cabo, é uma construção, não um sonho; é um processo de enfrentamento da realidade, não de idealismo. Amar a Pátria significa participar da criação de todos, para todos.
Policarpo Quaresma está vivo dentro dos que querem um país que abrigue todos os brasileiros.

domingo, julho 16, 2006

Amor e seu tempo – a Arlindo e Neném

A moça e o moço
sabiam um sonho: partir...

Sabiam pouco
mas se escolheram.

O moço trouxe madeira: navio
A moça trouxe tecido: vela
Partiram...

Sem saber
como a viagem é longa
como a viagem é breve
Partiram...

Ela de vestido branco
Ele de paletó e gravata.
Nem olharam...
Nem acenaram...

Começaram a fazer segredos
que todos sabem
e não sabem.

Tiveram filhos,
foram felizes, infelizes,
brigaram com razão, sem razão,
aprenderam o outro
como ninguém: mesquinhez, magnitude,
manias, fraquezas...
Ficaram aflitos juntos
histéricos juntos
doentes juntos
juntos, juntos, juntos...

Trabalharam
Cuidaram
Levantaram cedo
Fatigaram-se
Cada qual de seu modo:
fraldas
café
almoço
jantar
bolo
bife
vitamina
febre
antitérmico...

dinheiro
câmbio
juro
terra
reunião
diretor
chefe
emprego...

Devagar e depressa
os moços começaram
a despedir-se.
Seus pais
suas mães
surgiram
de repente
no espelho.

Como eles
os filhos
sem saber
também partiram...
Trouxeram netos...

Agora eles sabem
a vida, seu preço,
sua pena, seu penhor...

Cá consigo
começariam tudo de novo
juntos!

O amor foi massa de modelar:
paixão, falta, fogo, desejo, ciúme,
desespero, paz, harmonia, cansaço,
paciência, intolerância, silêncio,
dificuldade, plenitude, abrigo...

Tanto viveram juntos,
juntos, juntos
que, hoje, vivem
juntos
a edição melhor de si
que conseguiram
juntos.

Arquivaram
cobranças,
expectativas,
futuro,
passado,
conselhos,
opiniões...

Esse amor de hoje,
ganho não previsto,
é prêmio conquistado
por difícil aprendizado.

É... Amor começa tarde.

Poema em prosa sobre o tempo

Nasci em 27 de agosto de 1957, evento biográfico verificável em cartório e de pouca importância para minha prospecção ontológica.
Aliás, só muito recentemente, quando precisei saber o que sou, dei-me conta de que farei 40 anos. Passou um coelho correndo:
- É tarde, é tarde...
Não é tarde. É que joguei o bumerangue do meu eu no ar e me voltou o susto do tempo. Fiquei paralisada de terror.
É preciso calma para entender o que aconteceu. Do novelo do meu eu, puxei dois fios: o do calendário que marcou o meu nascimento e que me escraviza na sua falsidade (?) e o do tecido pulsante de uma verdade em que só eu acredito.
Que correm... Que correm...
O calendário ri de mim, menosprezando minha confusão e meu dilema, mas eu não me importo, senão com o fato de que me faltam palavras para falar do tecido.
Se eu as achar, me vingarei.
Eu era uma vez uma moça que olhava um trem que não parava de passar. Achava o trem bonito, cada vagão de uma cor... Pensava:
- Um arco-íris!
Um dia o trem desgovernou-se e me atropelou.
- Um arco-íris não dói dessa maneira. Isso foi um trem que me quebrou.
E comecei a juntar os pedaços.
Foi nesse dia que nasci e sei que ninguém acredita, embora seja verdade.
O trem continuou seu caminho desrotinado.
Eu, dentro dele, no entanto, fiz um tear com suas entranhas, no qual teço os fios de minha compreensão adversativa.
Não gosto de dizer que busco um tempo perdido para não dar a entender que perdi coisas boas – o que passou não sabe bem.
Minha vingança é saber que o passado já não existe, pois lembrá-lo é diferente do que ele foi, realmente, e aí posso reinventá-lo e gastá-lo de tanto o contar, do jeito que eu quiser.
E cada vez que o contar, mais estarei construindo-o de uma forma diferente, até que ele pare de doer. Porque quero ser feliz (subordinada sem principal?).
O futuro é uma expectativa dessa felicidade, apenas. Um rio grávido de prazer. E eu o farei. Como?
No hoje. Naquilo que só existe largo como o mar e enfim respiro sem parar. Do trem faço um barco, cujo leme está em minha mão e, pela primeira vez, cuido do rumo da minha vida.
Assim que descobrir tudo que quero, terei destruído o destino selado de silêncio de que fui forjada e serei eu mesma, construída no fio de minha palavra.

Menino do Capibaribe – para Filipe

Na terra
a lama - mangue.

No mar
a pedra - arrecife.

Na margem
a casa - palafita.

Na água
o jardim - sargaço.

No dia
a luz - sol.

Na noite
a orquestra - maruim.

Na lama
a vida - guaiamu.

Na vida
a migalha - sururu.

Na maré
o jogo - mergulho.

Na comida
o sal - tempero.

No banho
o esgoto - espuma.

No pai
o álcool - pancada.

Na mãe
o abrigo - chuva.

Na escola
o caderno - areia.

No papel
o lápis - dedo.

No búzio
o futuro - vento.

"Iracema", de José de Alencar: globalização x nação

Já se disse que um bom livro não é aquele que a gente lê; mas o que lê a gente. “Iracema”, de José de Alencar, lê o Brasil e o brasileiro atual de forma lúcida e, mais de cem anos depois, ainda pertinente. É um livro polêmico, como não poderia deixar de ser uma obra de um autor polêmico como Alencar: alguns podem deter-se ainda diante da hipertrofia imagística ou lingüística, mas um leitor maduro percebe sua contribuição valiosa para uma questão que se nos aparece em tempos de globalização: a da identidade cultural.
Iracema é uma personagem instigante. É uma índia tabajara proeminente no seu povo, uma espécie de sacerdotisa, guardiã do segredo da jurema, uma metáfora que simboliza a identidade cultural da sua tribo. Vivia harmoniosamente em contato com a natureza, resgate que o Romantismo fez como contraponto ao progresso industrial que se adiantava na Europa da época. Chega Martim, português estrangeiro. Houve uma quebra desse equilíbrio e instala-se entre eles uma relação dúbia como a do colonizado com o colonizador: amor? crueldade? vínculo? violência? dependência? lucro?
Iracema larga seu povo, sua cultura, suas raízes e entrega-se a essa relação. Há um período rápido de felicidade, mas Martim começa a olhar o mar e, insegura, perdida de seus pontos cardeais, Iracema interpreta isso como pode: ele deve estar pensando numa virgem loura do outro lado do mar.
Martim vai à guerra, Iracema fica só, tem seu filho Moacir e morre. É o que acontecerá com todos os brasileiros, se continuarem, nessa época de imperialismos disfarçados, a abrirem mão de suas raízes culturais em favor da cultura (?) de povos hegemônicos economicamente, nesse processo globalizante, avassalador e massificante a que se assiste.
É claro que se pode pensar num mundo sem fronteiras nacionais, num planeta que seria abrigo para todos igualmente e no qual todos fossem irmãos. Mas a realidade é outra, é iracema: há perdedores e ganhadores.
O ganhador precisa e tripudia; o perdedor agoniza, ainda mais se não tiver a tábua de salvação cultural, aquela a que se recorre em última instância. Quando Iracema deixou tudo para trás, ela o fez por amor ao outro, porém ninguém pode amar contra si mesmo. Nesse mundo, ainda bipolarizado, forte, de mercados e capitais fluidos, de mercadorias desnecessárias e, portanto, de consumismo, de muros não mais verticais, mas horizontais, em que todos querem entrar a qualquer preço, até com a moeda da escravidão, não vale a pena se inserir. Iracema nos ensina isso, quando morreu, já que entrou numa relação desigual e fadada ao fracasso unilateral. Pagar com vidas a entrada nesse mundo é cometer o erro da personagem: abrir mão de tudo e perder tudo.
Alencar fez de Iracema um símbolo da nacionalidade brasileira, num momento em que carecíamos compreender, depois da independência, o que era ser um país. Ainda não aprendemos de todo que um país se faz num processo lento de consciência cultural e de direcionamento político eficaz para o conjunto de sua população. Se entendêssemos o que Alencar simbolicamente nos legou em “Iracema”, trabalharíamos no sentido de tentar uma inserção que, pela primeira vez na História, objetivaria as exigências de nossa própria nacionalidade.

Por que literatura?

Eu era uma vez uma jovem, há muitos anos, com extremas dificuldades de comunicação, que resolveu fugir da realidade, lendo romances atrás de romances, trancada no quarto.
Pensando que a literatura faria o serviço de me isolar, caí, desabada, na idade madura, no abismo da mais nítida compreensão da vida – a literatura é um túnel de fuga invertido!
E, agora, ganho o que queria perder – a vida mesma, descortinada...
Um aluno meu, recentemente, começando, aos tropeços, a ler o mundo, me perguntou:
– Professora, como posso acreditar no que leio nos jornais? Aquilo é verdade?
Eu me vi diante da encruzilhada da minha vida: comecei a ler mentiras e a realidade me foi revelada.
Por isso não acredito em quem escreve dizendo-se isento, morro de medo de quem acha que escreve a verdade, independente de uma versão subjetiva. Todo ato de expressão é, antes de tudo, pessoal e intransferível, e ninguém pode ser totalmente objetivo.
Foram visões de mundo particulares que partilhei, muitas, muitas; e essa pluralidade me ajudou a pensar, a ver, a mudar quando foi preciso, a priorizar e a secundarizar, ou seja, a ser uma pessoa no mundo, sabendo a exata dor e a exata delícia de ser o que é.
A literatura parece não servir para muita coisa: neste mundo tecnificado, científico, materialista, ela parece algo supérfluo e desnecessário; neste mundo de comunicação massificada, a expressão solitária e interpessoal parece não valer.
Mas, quando paro diante da televisão moderna, com seus canais incontáveis e sua programação contínua, fico com saudade da comunicação verdadeira – aquela em que uma pessoa fala porque tem o que dizer de único e necessário, porque escritores sabem o que dizer, e comunicadores de massa dizem apenas o que o público quer ouvir, o que não constitui ato de compromisso responsável.
E o mundo está, hoje, cheio de palavras ao vento, vazias de significado; palavras que servem para vender o que não é necessário; palavras que são etiquetas que valem mais que pessoas; palavras que compram, que se transmudaram em cartões de crédito, que transformaram o mundo num lugar esquisito, onde as palavras “mercado” e “consumidor” substituíram as palavras “justiça” e “ser humano”.
Taí: acho que sei, agora, o que é literatura: é um ato de resistência – as palavras vêm escritas e não voam e nem se perdem; é a verdadeira globalização (não essa massificante, uniformizadora, avassaladora, serpente sub-reptícia, camaleão de que já ouvi falar).
Na literatura, está a comunicação como ela deve ser: plural, necessária, formadora, interpessoal, responsável e libertadora (digo isso porque, inclusive, somos livres para ler até o fim um livro ou para desistir de uma leitura começada).
Também diria sem fronteiras: o importante não é que seja o paciente inglês, húngaro, alemão, francês, indiano; o importante é que seja agente, construtor de sua própria história, e ninguém é capaz de ser agente construtor de si mesmo, sem tomar conhecimento de como outras consciências se formaram.
Somos tranças de gente – nada mais.
E a literatura é busca, resposta, troca de experiências e descobertas. Antes de tudo, entendimento e compreensão.
E, porque li Pasternak, Fernando Pessoa, Flaubert, Isabel Allende, Lima Barreto, Kazantzaki, Durrel, Gabriel Garcia Marques etc. etc. etc. ..., sei como deveria se desenrolar a verdadeira globalização: no respeito das especificidades e, no fundo, das referências construtoras de identidade pessoal.
E, quando vejo o mundo todo uniformizado nos seus padrões de consumo (e mais sério que tudo: nos seus padrões de desejo), tenho saudade de como aprendi o outro: único, específico, pleno de identidade cultural e pessoal.
Porque somos diferentes, solitários, inxerocáveis, insubstituíveis (ontologicamente), mas somos iguais e merecemos, todos, direitos iguais.
E só a partir da quebra da lógica de dominação é possível refazer as relações entre os homens e desconstruir essa falácia da mundialização que significa reeditar processos históricos em que há perdedores e ganhadores.
Sem literatura, esse caminho mágico de formação de consciências pessoais e, portanto, de respeito ao outro, o que será de nós? Como Prudêncio, o escravo de Brás Cubas, perpetuaremos essa lógica da dominação e caminharemos uns contra os outros indefinidamente.
A literatura é um caminho de construção do eu e caminho-de-construção-do-eu significa caminho de respeito ao outro.
Literatura é essa encruzilhada única de eus; é tecido justo e amplo de pessoas; é um lugar de registros de pluralidades, onde aprendemos que o outro e nós mesmos poderíamos ser o paraíso, aqui e agora.
Que possamos, um dia, fazer do mundo um lugar bonito em que seja possível viver em paz. Sem o fio das palavras, no entanto, esse tecido não estará à vista, nunca.
Acho que, ao fim e ao cabo, literatura é sonho também. E neste mundo globalizado, em que tantos acham que sonhar é sinônimo de comprar, tenho saudade do mais humano de todos os verbos que aprendi a conjugar, lendo: sonhar. Equilibrando-me no fio que separa aquilo-que-poderia-ser daquilo-que-a-realidade-é, comprometida, tento, lutando a luta vã das palavras, ajustar sonho e realidade. E la nave va.
Pronto. Acho que levantei um conceito de literatura. Fico com medo de dar por finda a tarefa e ter me esquecido de levantar algum ponto importante. Perdoem. Por mais que se diga, algo não é dito – esse é o motivo de haver tantos escritores dizendo tanto. E de alguns de nós sermos leitores ávidos por ler cada vez mais, tentando, todos, achar a última palavra, completa, que diria tudo. Ah! como a procuro...
Como diria João Cabral, essa palavra é “como a última onda que o fim do mar sempre adia”. Mas nos tornamos pessoas, quando, incessantemente, a buscamos.

sábado, julho 15, 2006

Descobrimento do Brasil

O mar:
lágrimas
de mães
de esposas
portuguesas.

O navio:
técnica
de escorbuto
medo
incerteza
mas coragem.

O destino:
meridiano
planejado
do paraíso.

O marujo:
sede
indômita;
partida
necessária;
sobrevivência
apesar.

O velho mundo:
vontade sempre
de ouro
(de fé?)

O plano:
ressurreição
da Europa,
poderosíssima
moribunda.

A menina:
astrolábio,
o que será?
Viva Portugal,
que descobriu
o Brasil!

O nativo:
diferença
alvo portanto;
pedra no meio do caminho.

O Brasil:
Portugal errado
Portugal difícil
Portugal enorme.

A solução:
morte
esquartejamento
exílio perpétuo
do Brasil.

A moça:
o que é Brasil?

A literatura:
lugar
busca.

A muita resposta:
apêndice português
o ideal europeu
dois
síntese
re-criação
denúncia
floresta
chuva
seca
neve
cerrado
frio
calor
caatinga
seringal
três
quatro
cinco...

A mulher:
Brasil –
substantivo
próprio
masculino
plural.

Máquina do mundo – a Francisco Torres Martins

I
Talvez exultasse inocente...

Se não dissesses breve
meu pequeno endereço;

Se não dissesses rápida
minha única viagem;

Se não dissesses demorado
o pó que me espera;

Se não dissesses teimosa
a prisão a que me obrigas;

Se não dissesses impossível
a exatidão do meu motivo;

Se não dissesses repetido
o atraso dos ponteiros;

Se não dissesses distante
a hora de justiça;

Se não dissesses pequena
minha palavra de cristal.

Talvez exultasse inocente...

Se não soubesse quebrado
teu mecanismo carcerado;

Se não soubesse insolúvel
teu hermético defeito;

Se não soubesse impotente
minha vida acorrentada;

Se não soubesse culpado
meu gesto agregado;

Se não soubesse inútil
minha voz comprometida;

Se não soubesse transitória
minha roupa necessária;

Se não soubesse difícil
meu lugar sozinho;

Se não soubesse horrível
meu caminho desviado;

Se não soubesse grande
meu serviço minúsculo.

II
Minha vingança?
Sei
teu peso bruto
teu defeito suplicante
tua armação insondável.

Minha vingança?
Não fui sina
cumprida sem pergunta.

Minha vingança?
Não compactuei
com teu silêncio condenado.

Minha vingança?
Sonhei
com um minuto diferente.

Minha vingança?
Conheci
meu destino previsível.

Minha vingança?
Recebo esse salário
que ninguém mais quer.
Pago com ele
o preço alto de minha vida.

E, feliz, não deixarei
fugir o pássaro raro
que peguei!

Consolo - para Angélica

Nem sei direito o que dizer...
Ficaram tão difíceis todas as palavras…
Eu mesma estou tão triste…

As coisas triunfam
As guerras continuam
A mão que suplica do poço carrega uma arma?
O medo vence…
Os muros nascem
dos nossos defeitos.

Mas o amor se esgueira
Me compadeço
daquela mulher com seu cachorro
que não pergunta;
daquele homem com sua criança
que recomeça;
daquela flor com seu perfume
que se entrega;
daquela aurora com seu ganho
que amanhece.

Sossega…
Viver é assim:
perder, perder, perder…

E, enfim, ganhar
minúsculas purpurinas:
o fato de estarmos juntos
tentando acertar
lembra amar
que tudo explica!

O avesso do avesso

A rua larga fervilhava. Verduras, frutas, raízes expostas, arrumadas e orvalhadas à espera de fregueses. Uma multidão anônima e barulhenta fazia a propaganda alternativa dos produtos. O descascador de laranjas, em especial, chamou minha atenção: uma engenhoca manuseada com prática tirava a casca como uma longa fita amarela que restava no chão, enrolada. Cestos, sacolas, sacos, barracos, lona, armações... Tudo era uma gambiarra de lixo.
A cor e a vida, no entanto, saravam o lixo, como num calidoscópio.
No fim da rua, o Forte das Cinco Pontas me espreitava, imponente, de cima de seus séculos.
A loja participava. De frente para a rua, à minha esquerda, vidrilhos, lantejoulas, miçangas, laçarotes de goma, plumas, paetês... À minha direita, na vitrine, um vestido de noiva mofado, mas bordado, exibia sua contradição.
Aí o tempo parou. Como quem se aproxima em câmera lenta, as putas chegavam devagar. Sem som, eu guardei no coração a estupefação dos feirantes, as unhas verdes, a saia de napa vermelha, a meia de rede roxa, o espalhafato das blusas e dos colares descombinados, o cabelo amarelo, o rebolado provocante... Eu compactuava com aquela alegria adversativa...
Mas o calidoscópio se quebrou: as putas pararam e fixaram, através da parede intransponível de vidro, o vestido de noiva. Como numa tela invertida, suas faces, refletidas no vidro, traduziam seu desejo impossível.
Nesse dia eu descobri o Brasil: retalho do mundo. O Forte das Cinco Pontas me espreita, irreversível.
Do outro lado do vidro, amputada do sonho, uma multidão teimosa insiste em escrever uma história num alfabeto que desconheço... E terminará, numa última e magnífica contradição, por concretizar meu desejo de justiça.

Por que sonhar com uma escola inclusiva

No final de 2000 fui indireta e duramente atingida pela deficiência: meu filho de, então, 17 anos contraiu uma doença neurológica rara que lhe deixou graves seqüelas.
Essa história resumida num parágrafo parece rápida e fácil, mas consumiu da família toda muitos meses de lágrimas e dores de toda espécie.
Particularmente, as piores dificuldades concentraram-se naquilo que podia ser evitado e não o foi – desentendimentos com o plano de saúde, com o hospital domiciliar ou audiências com médicos cujos sombrios prognósticos apontavam vida vegetativa seguida de morte.
Apesar disso, em 2003, meu filho voltou a estudar, repetindo o primeiro ano do ensino médio. O quadro que se descortinou, durante três anos, repetiu o que já tínhamos experimentado – sofrimento evitável que potencializa o inevitável.
É sobre essa experiência que este relato se constrói e as metáforas, com licença, são devidas às dificuldades básicas de tradução de terremotos em palavras. O chão se abriu e caímos num abismo, localizado entre o “não sabemos” e o “não queremos”.
O “não sabemos” veio falado e seguido do “não queremos saber”, velado: os erros foram se repetindo à exaustão durante três anos. Esperei o erro no primeiro ano, mas, no segundo, não. Infelizmente, ele tornou a acontecer...
Sistematicamente, a escola não garantiu a meu filho medidas de acessibilidade arquitetônica, comunicacional, metodológica e programática, o que agudizou suas deficiências.
Seria injusto dizer que foram criadas barreiras afetivas, mas só a acessibilidade atitudinal não faz de uma escola uma escola.
O “não queremos” é crime, por isso não é falado. Mas ele existe no desvão de nossa humanidade incompleta.
Existe inarticulado tanto no pai que quer uma escola conteudística apenas e acha que a pessoa com deficiência atrapalha o aprendizado rápido do seu filho normal, quanto no que finge acreditar que o filho aprendeu uma tábua de conhecimentos pertinente e quantitativamente adequada.
Existe no dono da escola que quer vender pluralidade, sem ser, sem construir e sem formar pluralidade.
Existe escondido no professor que se agarra a fórmulas tradicionais e pensa que não tem tempo para dar atenção especial a nenhum aluno, mesmo ao que precisa disso (e muitos precisam). E que perpetua o sistema, usando-o como desculpa ou como atenuante, a não ser quando reclama do salário.
Existe em todos nós quando sentimos o constrangimento da situação de falar com nosso chefe para levarmos nossa mãe, já com deficiências, ao médico. Esse nó só aparece numa sociedade que não sabe harmonizar diferenças, nem criar confianças.
Existe na escola que finge que todos são iguais e expulsa os diferentes. De todos os matizes. Ou na que aceita o diferente, mas não é capaz de eliminar as barreiras que o derrubam.
Existe no sistema uniformizante que pede ao aluno para escrever sobre “pluralidade” num texto do vestibular que o exclui se ele não acertar a fazê-lo.
A deficiência de meu filho me humanizou: aumentou minha capacidade de sonhar, lançou-me contra o estabelecido, me fez chorar e errar. Também despertou dentro de mim os mais primários imperativos de fuga e suplantação de onde brotou uma energia desconhecida que agora me move.
A clareza decorrente desse processo me fez vislumbrar uma escola que seria uma casa com “sótão” (para atender as habilidades altas) e “porão” (para atender as limitações funcionais) e, não, um lugar que ignora os alunos e seus tempos, interesses, quereres e necessidades particulares, seqüencia aulas iguais, sem garantir motivação, e começa a “falar” em aumentar o tempo de permanência do aluno, repetindo aulas expositivas, sem “pensar” nas especificidades e, conseqüentemente, em atividades também não-acadêmicas que poderiam desabrochar múltiplos estilos de aprendizagem e inteligência.
Trazer a pessoa com deficiência para a escola não é só aceitá-la; é mudar a escola, e essa transformação não só é possível como necessária. O que não é bom para a pessoa com deficiência não é bom para ninguém.
Essa presença na escola é um caminho: como num espelho, ela nos fará assumir nossa natureza complexa e múltipla e nos dará coragem de lutar pelo equilíbrio da balança inescapável que é a nossa convivência – num prato, a igualdade (quando a ameaça é a inferioridade); no outro, a diferença (quando a ameaça for a massificação).
A escola inclusiva é desejável porque todos nós merecemos e temos o direito de pertencer, sem abrir mão de nossas idiossincrasias; é desejável porque precisamos de planejamentos e tratamentos individualizados; é desejável porque carecemos de projetos; é desejável porque necessitamos de diálogo; é desejável porque precisamos uns dos outros; é desejável porque não podemos prescindir de nós mesmos.
A presença da pessoa com deficiência escancara a deficiência de nossa escola e de nossa sociedade. O processo de inserção dessa pessoa implicará o enfrentamento necessário desse problema e o conseqüente aperfeiçoamento da escola e da sociedade de todos.

Minha língua

Não cresci naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos. Fui à escola. Tudo o que sou e compreendo deve-se a esse acidente inescapável da civilização.
Meu gato e minha magnólia tomaram um susto tão grande, que não me lembro do tempo em que aprendi a ler. Só da cartilha, um livro estúpido.
Crianças não precisam aprender o óbvio, só adultos, e essa cartilha terminou por adiar um pouco meu amor por livros.
Ah! Ela tinha um tesouro escondido: quando ela terminava, havia uma coleção de sílabas destacáveis com as quais pude começar a me escrever.
A minha avó morava no sertão e não via a uva. Pude, com as sílabas, formar as minhas próprias frases: minha avó não via nada, era uma barata tonta. Mas que avó...
Com esse tesouro fiz absurdos, inclusive alfabetizei minha irmã. Até hoje ela pesquisa aprendizado e ensino de língua por minha culpa, tentando explicar a seus alunos o avesso do que sofreu.
Passei pelo primário e não trago dele nenhuma lembrança do português, a não ser a classificação morfológica das palavras.
Flávia: substantivo próprio, feminino, singular. Sou: verbo anômalo da segunda conjugação, primeira pessoa do singular do presente do indicativo.
Lembro-me bem mesmo da matemática, um bicho horrível que seguiu me apavorando vida afora...
No ginásio, tudo piorou. As professoras eram freiras e não sabiam ensinar o prazer. A aula de religião era um horror. Deus, em vez de luz e compreensão, foi, nesse período, ira e vingança.
Eu tive medo também da aula de português. A freira pegava o texto e o quebrava todinho, estraçalhando-o em orações inalcançáveis.
“Além, muito além, daquela serra” era só um adjunto adverbial de lugar. “Que ainda azula no horizonte”, uma oração subordinada adjetiva explicativa e “nasceu Iracema”, uma oração principal... “Iracema”, um sujeito simples? “Azula”, um verbo intransitivo?
E eu lia o texto, sentindo o gosto de sua ritmação maviosa e Iracema era linda, de cabelos mais negros que a asa da graúna, com bafo de baunilha, porte de palmeira, pé grácil e sorriso doce como o favo de uma abelha. Ela mergulhava no rio e o aljôfar d’água a rorejava como a uma mangaba...
Como ela seria um sujeito simples?
A freira classificava orações e eu mergulhava nas palavras exuberantes de Alencar e amei o verbo “azular” e, apesar de ter cabelos castanhos, bafo de gente mesmo, porte de hipopótamo, pé chato e risada acintosa, quando eu mergulhava no chuveiro, o aljôfar d’água me rorejava toda e meu banho sabia a mangaba.
Foi Alencar meu primeiro professor de português de verdade. Seus adjetivos não concordavam com os substantivos, iluminavam-nos!
A partir daí, me tornei uma aluna mediana, pois tinha mais o que fazer e descobrir. Os livros começaram a me forjar: uma substância própria, feminina, singular, testemunha que eles me tornaram de outras consciências se construindo sob meus olhos.
Entre as capas, havia pessoas que erravam, acertavam, refaziam, refaziam-se, amavam, perdoavam, viviam, morriam, cresciam, nasciam, sonhavam e havia povos, nações, sociedades, culturas...
Foi assim que ganhei o que sou: uma trança de gente, uma professora de português, língua com cujas estruturas coordenadas me construí aditiva, adversativa, conclusiva, explicativa e com a qual me desvencilhei das estruturas subordinativas e me sinto integrante, temporal, condicional, causal e com finalidade, apesar de não conformativa e comparativa.
Sou Flávia Suassuna.