segunda-feira, dezembro 18, 2006

O vestibular é justo?

Alguns países democratizaram o ensino médio há cerca de 100 anos e, aos poucos, foram fazendo o mesmo com o ensino superior. Os Estados Unidos, o Canadá, a Coréia do Sul, por exemplo, levam perto de 80% de sua população à universidade.
É claro que, nesses países, o vestibular não é excludente; se o fosse, esses números não seriam alcançáveis. Exemplificando, nos Estados Unidos, o papel desse exame é localizar o estudante na universidade que melhor desenvolveria suas habilidades.
A sociedade americana trilhou nessa área um caminho que vale a pena estudar: não só construiu a melhor universidade do mundo (o critério é acadêmico – é a mais citada por outras universidades em trabalhos acadêmicos), mas também a que abriga um número espantoso de alunos, até de outros países, que lá aprendem/produzem conhecimento de ponta.
Não se quer com isso defender que esse modelo seja exportado e copiado em todos os outros países, independentemente de sua história e de sua cultura, mas é preciso constatar os efeitos positivos desse sistema para a sociedade global: há avanços científicos e tecnológicos de que se desfruta no mundo, forjados nos inquietos “campus” americanos.
Para entender o sistema, no entanto, é bom considerar sua pluralidade – nem todo estudante americano, por exemplo, freqüenta as chamadas Ivy Leagues, onde só estuda a elite intelectual americana, egressa de qualquer estrato social, identificada através de um exame nacional seriado, que acontece ao longo do ensino médio. Mas não é por isso que um conjunto grande de alunos não terá um lugar no ensino superior: há uma multiplicidade de tipos de universidades que formam de médicos a tratoristas, passando por pedreiros, encanadores, esteticistas, motoristas de táxi, nos freqüentadíssimos Community Colleges, onde, aliás, estão 50% dos universitários americanos.
Ensina-se de tudo na universidade americana – artes ou ciências –, principalmente se profissionaliza uma população grande que, através de um conhecimento também humanístico, é capacitada para se debruçar sobre problemas reais e os enfrentar ou resolver, pensando sobre eles.
É conhecida a dificuldade de brasileiros que, estudando nos Estados Unidos, são instados a resolver problemas de empresas americanas que enviam à universidade seus impasses reais para que sejam apresentadas soluções a fim de superá-los.
Bolsistas ou pagantes (de toda sorte – uns pagam muito, outros nem tanto, porque fazem trabalho voluntário, esportes, arranjam empregos variados, trabalham no “campus” em creches, no jardim, nas cantinas...), os americanos se orgulham dos números de sua universidade, um sistema complexo e grande, que conseguiu profissionalizar uma população eficiente e rica.
É claro que há outros valores noutras sociedades e culturas e é aí que entram as adaptações e a criatividade de cada povo. Mas o que se quer aqui é apenas considerar o papel do vestibular nesse sistema: localizar o aluno numa universidade para que seus talentos sejam desenvolvidos e aproveitados socialmente, porque a sociedade americana disponibiliza vagas para quase todos. E o vestibular segue as regras desse jogo.
Não é o que acontece na sociedade brasileira, sabidamente uma das mais excludentes do planeta. Apenas 10% da população completa cursos universitários cujos modelos monolíticos variam somente em relação à qualidade dos alunos que chegam: os cursos modelam grade curricular, carga horária, metodologia e didática igualmente, o que, ao longo da formação acadêmica, vai forjando dois grupos de profissionais – o mais capaz e o menos – e, mais tarde, uma multidão incontável de desempregados ou subempregados que mais recentemente resolveu virar a turma que faz rotineiramente concursos públicos, como se fosse possível a uma sociedade empregar toda a sua população na esfera pública sem a contrapartida da iniciativa privada responsável pela geração da riqueza.
Muito recentemente começam a “pipocar” universidades alternativas aqui em Pernambuco, como o Cefete ou o Senac, mas são iniciativas recém-nascidas nas quais a população ainda não acredita e que, num processo lento, terminarão por conquistar seu lugar no sistema.
No Brasil, portanto, o vestibular tem um papel diferente do que tem nos Estados Unidos: ele precisa cumprir um “dever de exclusão” porque a sociedade brasileira disponibiliza “vagas” para poucos – certamente uma sociedade excludente precisa de mecanismos de exclusão e nosso vestibular é apenas uma entre as muitas ferramentas que o sistema utiliza para descartar a maioria.
Nosso vestibular é freqüentemente acusado de injusto e excludente. E é. Mas ele é apenas a ponta do “iceberg” de nossa lógica política; é apenas a cachoeira de um rio que se estreita absurdamente ao longo do seu leito e que afoga gente demais nas suas águas.
O que precisamos enxergar no espelho desse rio é nossa face refletida. Com um revólver nas têmporas.
É difícil o percurso: democratizar a qualidade do ensino fundamental, quebrar a lógica da reprovação escolar, incluir a pluralidade com suas necessidades especiais, capacitar os professores para enfrentar desafios imprevisíveis, valorizá-los para que se sintam parte de um projeto social essencial, repensar o ensino médio a fim de prepará-lo para a diversidade que o alcançará, priorizar o essencial e descartar o desnecessário. Sobretudo encarar as disparidades e as contradições.
É difícil. Mas é inescapável e urgente.
O vestibular é injusto, até porque a sociedade brasileira é injusta. Democratizá-la é tarefa de todos e isso se faz num processo lento e penoso de embates de quereres e interesses de toda sorte.
De qualquer forma, há fraturas visíveis na arquitetura dessa lógica excludente dentro de cada brasileiro que começa a se inquietar buscando saídas e soluções. Mas é preciso mais empenho.
Que façamos do espetáculo de nossa desmedida violência impulso para buscar novos caminhos, orientados por outra bússola: a da maioria. E que nossa criatividade e nossa alegria costurem um tecido mais elástico cuja trança seja fruto do trabalho e da participação de todos nós.
Texto publicado em www.jornaldedebates.com.br

domingo, dezembro 17, 2006

Meu amor

Nunca pensei escrever
sobre um navio afundado.

E sobre a noite pesada
do abismo debruçado...

Não devia escrever
este poema tão triste.

Nem devia falar
do projeto afogado.

Mas não vejo
peixe cintilante,
nem pérolas,
nem auroras...

Só concha fechada,
naufrágio,
bolhas que são gritos
impedidos pela água.

E nem adianta chorar:
o mar já guarda
lágrimas demais.

Sei que manhãs teimosas
vencem a treva noturna,
mesmo se não acredito.

Mas minha perna bonita
ficou presa na âncora.

E o perfume que inspiro
é o oceano salgado.

Nesse ermo profundo,
nesse silêncio gelado,
não há garrafa, papel,
caneta nem salvação?

Aí uma sereia escondida
nos recessos do meu soluço
se precipita e desata
o nó difícil de molhado.

E um peixe muito absurdo
(fora do esquadro e da esfera)
com sua avara lanterna,
como um líquido relâmpago,
revela bálsamos que sempre há
na franja da próxima onda
que o ser do mar sempre envia.

A mágica das manhãs
estende sob meu pé
alva alcatifa de areia
e uma faísca na água
é um objeto de vidro.

Suspendo e miro o aquário:
vejo o navio perdido
um escafandro fraturado
e uma ampulheta quebrada,
tudo sem solução...
Deixo tudo no mar.

Há uma riqueza sobrante
na palma de minha mão:
uma bússola prateada.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Chá de rolha - 2

Mudanças – para Samarone Lima (www.estuariope.blogspot.com)
Mudança é um troço inescapável e melancólico, não há como fugir disso.
Já pensei muito sobre esse assunto e, para arrumar o que concluí, vou começar com a ajuda de João Guimarães Rosa. No “Grande sertão: veredas”, ele diz que há duas espécies de pessoas – as provisórias e as definitivas.
As provisórias são como os jagunços, pessoas migratórias que não sentem falta de uma casa e passam a vida pra lá e pra cá, no mundo, sua casa é o planeta.
As definitivas são como os fazendeiros, pessoas arbóreas que se apegam a casa de tal modo que nascem e morrem nela.
Para mim, no entanto, também existem as mistas; na verdade, esse negócio de classificar pessoas é bem difícil. As mistas são pessoas como eu, que sou definitiva, mas que a vida forçou a se transformar em provisória, ou vice-versa, ainda não cheguei a uma conclusão.
Penso que sou definitiva porque acho uma mudança uma coisa horrível. Na escala Richter, é um terremoto 8.0 – desastre interno dos mais irreparáveis.
Primeiro vêm aqueles estranhos, que me invadem a alma com sua pressa desordenada, bárbaros que desarranjam meu mundo como quem se diverte com o caos. As portas abertas, minhas coisas em caixas, tudo perdido de mim, por, no mínimo, uns quinze dias; enquanto não tirar tudo das caixas, não saberei o que se perdeu, o que restou, o que se quebrou...
As coisas estavam repousadas, cada qual em seu canto, compunham meu abrigo, meu porto seguro... Agora, reviradas, desnudam sujeiras, ridículos, lembranças, incógnitas, segredos...
Tenho que pensar, me enganando, que não me importo com elas, mas é claro que me importo, que sou minimalista em relação a coisas e as que retive foi porque são essenciais.
No momento entre uma casa e outra, fico sem chão, perdida, com a louça de minha avó numa caixa, nos braços... Lembro-me dela, teve tantas casas que minha mãe e minha tia só tiveram duas cada uma, seqüeladas que ficaram das mudanças de minha avó, que, malograda, pensou que a felicidade estava no arquivo da geografia física.
Aí chego na casa nova. É verdade: é preciso não comparar para sobreviver. Penso em Cecília Meireles e seus “endereços breves” e naquilo que não tem solução e tem que ser enfrentado. E sigo tentando transformar em lar aquele dentro vazio.
– Pronto, mãe! Agora podemos voltar pra casa, disse-me um dos meus filhos, ao fim de um dia difícil de mudança.
– Ai, meu filho, é isso aqui que a gente tem que transformar em casa... Não se importe... Vai dar tudo certo, nós é que somos abrigos uns dos outros...
Dormir exausta, com tudo desarrumado, e acordar desnorteada e começar a desfazer as caixas, descobrindo minúcias, objetos que não sei onde vou colocar na casa nova, na nova pessoa que nasce durante a mudança, que nunca mais sou a mesma quando o terremoto passa.
Aí é preciso fazer um esforço e começar a amar o novo espaço, arrumá-lo dentro de mim e, se possível, fazer um cantinho para mim, para cada um; jogar fora o que, em vão e para nada, foi acumulado; rearranjar almas e corpos; chamar os amigos; começar a cozinhar, lavar roupa, comer e, o mais importante, começar a amar dentro daquele oco, para preenchê-lo. E, aos poucos, vai se compondo um lar, com não só “tudo o que ele implica de suave, de concordâncias vegetais, murmúrios de riso, entrega, amor e piedade” (o que seria de mim sem Drummond, que já disse tudo e posso usar?), mas também de desacordos e desacertos de toda sorte que é preciso perdoar...
É verdade: é preciso aprender a se despedir sem dores; é preciso tocar em frente; é preciso não adubar as angústias da vida... Nem tudo é alegria... Mas não é preciso morrer...
Como já disse por aí, tentar lembra amar, que tudo explica!

Chá de rolha - 1

Minha irmã Débora, do Departamento de Marketing e Digitação (se bem que o departamento dela é bem maior do que isso, preciso pensar num nome melhor), anda se queixando da seriedade deste blog.
Vou tentar, de vez em quando, dar certa leveza ao que escrevo neste espaço, que chamarei de “Chá de rolha”, em sua homenagem, ela, a quem devo e amo tanto (preciso aprender a desvincular essas duas palavras; estou perto dos cinqüenta e ainda tenho tanto que saber...).
Pois bem... “Chá de rolha” será um espaço de amenidades e de levezas, palavras que também me povoam, eu, substantivo composto.