segunda-feira, abril 21, 2008

Chá de rolha - 10

Uma noite especial
O bicho mais parecido com filha que terei é nora. Agora, por exemplo, a casa está cheia de noras e cada uma delas traz uma riqueza especial. Como só tenho filhos, a primeira prenda que cada uma acrescenta são surpresinhas assim: venho andando pela casa e encontro uma havaiana cor-de-rosa! Essas coisas pequenas costumam me dar uma alegria leve e doce...
Sei que noras, por enquanto, são seres transitórios. Mas é impossível não gostar de cada uma que chega e sentir um pouco quando se vão... São aquelas coisas da vida que a gente deve aproveitar enquanto tem e, depois, deixar partir, suavemente...
A nora que Diogo me trouxe é reservada e bela como uma madona de Rafael. Sua pele dá complemento à beleza de seus traços e ela parece ser franca e saber o que quer e o que é. De todas, é a que menos conheço, até porque Diogo é um marujo, mal pára em casa.
A nora que Filipe me trouxe é inquieta e curiosa. Chegou aperreada e sem rumo, e acho que Deus a colocou ao lado de meu filho com deficiências porque ela precisava aprender a ir mais devagar para ir certo. É a mais pegada comigo, porque sua família mora no interior e também porque Filipe tem pouca autonomia e fica muito ao meu lado. Os três temos nos ajudado muito, de mãos dadas.
A nora que Daniel me trouxe é a mais antiga. É manhosa, calada, discreta e charmosa; tudo que veste fica chique e “estiloso”, como dizem meus alunos. Esta história é sobre seu gato, que está passando uma temporada na minha casa, enquanto ela se muda.
Para contar esta história de hoje, preciso antes contar outra, anterior. Há algum tempo, minha irmã Debe nos convidou (eu, meus filhos e minhas noras) para assistir a um filme francês na casa dela. Mas o programa foi um fiasco: deu uma fome nos meninos, que acabaram com o creme de galinha dela; os telefones não paravam de tocar; fizeram pipoca; comeram bolo; mandavam dar pause no filme; saíam; voltavam; desistiram... a maior confusão. Aí, Debe não agüentou:
− É nisso que dá! Me misturar com mundiça pra ver filme francês! Já não tou entendendo é nada!
Caímos todos na gargalhada e demos razão a ela. A partir daí, a cor do sofá, o tamanho da feira, o cardápio, tudo se justifica lá em casa assim: é por causa da mundiça. E nos divertimos, rindo de nós mesmos.
É claro que a mãe, que sou eu, sempre tenta dar um jeito e corrigir, mas Debe tem razão: é uma mundiça sem remédio. Daí a minha casa se tornar a Rocinha foi um pulo. Mas tenho um consolo: a casa de minha outra irmã, que também tem uma mundiça desmantelada, é o morro do Alemão, porque seus filhos são louros. Pelo menos não estou só, atolada na lama...
Então, há dois dias, chamei um novo amigo velho para jantar e resolvi inaugurar a louça da minha avó, que está comigo há muitos anos e que, heroicamente, consegui salvar intacta de minhas muitas mudanças, com muito esforço, confesso, sempre a carregando no colo, com todo o cuidado.
Meus leitores já sabem que inaugurações não são o meu forte (quem quiser ler o relato das inaugurações malogradas, é só acessar aí ao lado o arquivo de fevereiro de 2007). De novo, deu tudo errado.
Deixei para pôr a mesa depois que os convidados chegaram: copos de cristal, os pratos de vovó (belíssimos espécimes de uma antiga louça inglesa, “chique no último”, como se diz no Piauí), guardanapos bordados, cardápio francês, vinho chileno, tábua de queijos!...
Confesso que passei a semana temerosa... De surpresa, chamei outro amigo comum... Eles não se viam há quinze anos e, sorrateiramente, provoquei o reencontro... Tantas preparações, telefonemas interurbanos, nem sei como consegui, de tanto que me enrolei com os DDD... Pois bem, tudo chique e lindo, fui buscar na cozinha o prato francês que tinha feito com tanto esforço e com tanta ajuda...
Aí o gato da minha nora apareceu na sala e resolveu afiar as unhas na toalha... A toalha escorregou... Houve um espanto, todos correram, tentaram salvar o desastre... Mas um prato e um copo caíram no chão e quebraram-se em mil pedaços! Todo mundo ficou triste...
− Ai, é algo de estimação? − perguntou a esposa do meu amigo.
− Essa louça foi da minha avó − respondi, tentando parecer animada.
− Que pena!
− É bobagem, disse eu, varrendo e disfarçando minha desolação.
Mas o que eu pensava mesmo era na história de Debe, que eu não tinha mesmo que me meter a besta com a mundiça que me cerca.
O jantar terminou, todos foram embora bem, mas minha nora ainda não se recuperou do remorso e da culpa, coitada! O gato se assustou um pouco na hora, com a correria e a admiração geral, mas, cinicamente, logo depois, estava dono da situação, passeando todo charmoso e, de novo, proprietário da casa.
Quando Diogo chegou, que contei, retrucou:
− É a bocada, mãe, não tem nada a ver com você. Relaxe!
Essa frase e o e-mail do meu amigo no dia seguinte, dizendo não só que a noite foi mágica (apesar do gato) mas também que cozinho bem, me consolaram de tudo. Passei o sábado rindo de mim mesma e da situação e até achando que tenho tudo a ver com a mundiça, já que a pari.
O que queria mesmo neste texto era registrar meu afeto por essas meninas e meu apreço por meus dois velhos amigos novos (pois, de certa forma, sempre somos outros depois das tempestades) e dizer que encontros, desencontros e reencontros fazem de nós o que somos: seres espirituais, é verdade, com cicatrizes e feridas, que irão aos poucos, no contato uns com os outros, lapidando o que, por fim, surgirá de melhor em cada um e em todos...

A Luis Manoel, Manoel Affonso, Isabella, Bruna Monteiro, Julli e Bruna Lafayette. E a Lampião, o gato, claro.

P.S. Mundiça s.f. (s.XIX) infrm. 1 B N.E. grande quantidade: 1.1 de gente que pertença às camadas mais baixas da população; ralé 1.1.1 de pessoa ou coisa ruim 1.2 de piolho (p. ext.: pulga, percevejo etc.); cafute 2 ARAC ENT BA m.q. BICHO-DE-GALINHA ETIM f.dial. de imundície/imundícia □ SIN/VAR ver sinonímia de ralé □ ANT ver antonímia de ralé. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa)

domingo, abril 06, 2008

Outras mudanças

Passei muitos dias sem saber direito sobre o que escrever. Primeiro, pensei em contar a história do jardineiro fiel; depois, um poema restou incompleto sobre a mesa... Mas a mudança parece ser o fato de que preciso falar.
Eu já tinha escrito uma crônica sobre mudanças. Aí ao lado, no arquivo de dezembro de 2006, pode-se lê-la ainda. Ter um blog traz dessas vantagens ótimas de se ter à mão, rapidamente, todos os textos que se escrevem. Só sabe disso quem passou muitos anos sem escrever ou escreveu e deixou num papel se acabando no fundo de uma gaveta, como eu. Já falei disso também, de minha querida irmã, diretora do Departamento de Digitação e Marketing deste blog, e de como ela, heroicamente, salvou alguns textos meus e, agora, insiste para que eu escreva com freqüência certa neste espaço. Confesso que a intermitência é minha, e ela fica muito contrariada.
É que essa mudança que agora está acontecendo tem algo diferente: estamos, as quatro irmãs, como é possível a cada uma, desmontando a casa de nosso pai.
Casas são como pessoas – têm espírito. Há quem não goste de casas usadas exatamente por isso: é como se as muitas vidas fossem deixando atrás de si um rastro de alegrias e, principalmente, de dores (que se tende mais a temer) e compondo, naquele espaço, um amálgama invisível poderoso.
Mas eu gosto de casas e também de observá-las, exatamente por isso: por suas paredes contarem a história de muita gente.
Tudo isso foi para dizer que a casa de meu pai tem um espírito inquebrantável e vencedor: muitas mulheres tentaram arrumá-la totalmente, mas, com a ajuda de meu pai, havia nela sempre algum recinto desarranjado.
Muita gente estranhava que chamássemos “a casa de papai” e não “de mamãe”, mas ela pertencia mais a papai. Daí sua força e seus vãos resistentes à arrumação, que refletem meu pai perfeitamente.
Morei em duas casas antes de me casar. Exatamente onze anos em cada uma. Na primeira, vivi minha infância. Era uma casa na Boa Vista, numa transversal da rua do Padre Inglês. Na segunda, um casarão antigo aqui em Casa Forte, vivi minha adolescência. Ainda me lembro da sensação estranha que senti quando me casei, meus pais e meus irmãos no terraço, e eu parti, apesar do medo.
Com a casa, meu pai envelheceu. E o mundo mudou tanto que a casa, imponente, já é impossível cuidar dela.
Sou uma metonímia: minha história exemplifica minha geração e suas pautas. Em vinte e cinco anos, tudo mudou tanto que ficou impossível manter essa casa funcionando.
Em primeiro lugar, as mulheres da nossa classe começaram a trabalhar. Aos poucos, fomos, primeiro, complementando o orçamento doméstico, depois, tomamos a tenência dele, e nossos maridos, confusos, partiram ou restam derrotados e atônitos ao nosso lado. Depois, as famílias diminuíram e não ficam mais em casa. Desenvolvemos uma indústria de lazer poderosa que, como uma sereia, nos seduz e impulsiona para fora. Também trabalhamos mais, até porque ganhamos menos, ou porque queremos mais... Não sei... O que sei é que as casas são menores, e la nave va... Por fim, há não só engarrafamentos, que ainda reduzem nosso tempo em casa, mas também violências, que valem prevenir – apartamentos, pelo menos, parecem menos vulneráveis.
Tirar os móveis dessa casa foi, para mim, visivelmente, fechar um mundo – é como se eu, concretamente, desmontasse um jeito de ser já impossível de manter. Lembrou-me as casas de engenho que, sem escravos, ficaram sem luz, sem água e sem esgoto. E desmoronaram. Assim a casa do meu pai: sem mulheres, fechou.
Como todos nós, também fiquei com algumas coisas da casa: reformei, limpei e arrumei nos quartos, na sala de meu apartamento... Misturadas e harmonizadas com as minhas, essas coisas deram a ele uma cara interessante.
Metaforicamente, nessas últimas semanas, fiz o trabalho de uma vida: saí da casa onde cresci; dividi com meus irmãos, sem conflitos, os bens de meu pai e de minha mãe; arrumei, limpei ou restaurei o que me coube ou escolhi, ao lado do que eu já tinha...
Como todas deveriam fazer, a minha casa agora conta a minha história.

Chá de rolha - 9

O jardineiro fiel
Há um mês, aproximadamente, eu, duas irmãs e meu cunhado fomos caminhar na praça de Casa Forte.
Essa tarefa se deve a um esforço que temos feito para a minha pressão não subir, nem o peso geral.
Andamos e falamos tanto que ficamos esbaforidas... Mas, ao que parece, o remédio funciona, ainda que parte do sucesso advenha do prazer que tiramos da companhia e da análise da “psicologia dos fatos”, pela qual se pagam fortunas, e nós, peripateticamente, efetivamos sós.
Pois bem, nesse dia, em especial, dobramos o lucro. Quando ainda estávamos chegando à praça, nosso cunhado foi abordado por um jardineiro. Ele vinha vendendo (mas, na verdade, ele mais conversava do que propriamente vendia) umas plantinhas que carregava num carro de mão.
Ele era desses filósofos populares que de vez em quando aparecem e fazia elucubrações sobre a natureza dos bairros do Recife:
– Casa Forte é especial, eu moro num bairro de minoria...
Ainda que atrapalhasse os conceitos, entendi perfeitamente o que ele quis dizer e, andando todos, acompanhamos suas análises e suas considerações.
Aí ele soltou uma exclamação:
– E aí, doutor, que sorte a sua, hein?, ser capitão desses navios vistosos aí!...
Meu cunhado ficou todo cheio de dedos e disse que só era capitão de um “navio” e que eu e Debe éramos suas cunhadas... Mas o jardineiro insistia:
– Que sorte! Navios bonitos você tem... assim... ter a sorte de sair nessa companhia... bonitas...
É claro que já eram 17 horas e o lusco-fusco atrapalhava a visibilidade total, mas não levamos isso em consideração. E rimos a valer, até porque não havia vingança mais doce contra a idade, o desmoronamento geral e mesmo contra uma brincadeira que meu cunhado faz, chamando-nos de araras, porque falamos muito, alto e ao mesmo tempo. Além disso, ele faz o maior sucesso sempre que diz: "Quando Deus não dá irmã, o diabo dá cunhada..."!
Ao “desembarcar” na praça, estávamos radiantes, ríamos a valer e, de agora em diante, temos um trunfo: navios podem ser grandes, desengonçados e podem até estar quebrados, mas, a las cinco de la tarde, acontecem milagres...