Lendo Machado de Assis - 2
“É bom ser enfático, uma ou outra vez, para
compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige.”
(Bento Santiago, narrador de “Dom Casmurro”)
Nascida no final da Idade Média, a burguesia veio se fortalecendo até que, em 1789, chega ao poder na Europa. Como desdobramento disso, surge o Romantismo, cuja pauta da idealização do amor, do casamento e da mulher serviu à dominação burguesa durante a primeira metade do século XIX.
Mas, na segunda metade do século XIX, já se começa a assistir ao declínio desses valores: os temas da infelicidade conjugal e da infidelidade feminina inauguram o Realismo, quando as condições de vida do proletariado impulsionam o europeu a questionar a burguesia.
Aqui no Brasil, as três mais conhecidas obras de Machado de Assis “abrasileiram” esses temas, dando-lhes um sabor tropical e provinciano. A mais famosa das três, “Dom Casmurro”, traz o mais debatido triângulo amoroso da literatura brasileira e, como tudo relativo ao autor, é uma obra difícil de explicar e comentar.
Na Europa, o Realismo tem preferência pelo contemporâneo e, portanto, pelo sensível, ou seja, apreensível pelos sentidos. Realiza-se por meio de uma narração equilibrada, racional, competente, isenta e objetiva, na terceira pessoa. Em outras palavras: o narrador é onisciente e “carrega” o enredo de forma “invisível”, com capítulos longos, sem se envolver emocionalmente com a mensagem. Desse modo, o leitor se entrega ao narrador e deixa-se levar, não se dando conta de que alguém conta a história.
“Dom Casmurro” quebra totalmente esse tipo de narração, de várias formas: primeiro, o tempo da ação é diferente do tempo da narração – Bento, para “atar as duas pontas da vida”, sua juventude e sua velhice, conta, já velho, episódios de sua vida adulta; só que, nesse intervalo, foi acumulando mágoas e ressentimentos, o que resulta num relato emocionado de que o leitor duvida. Segundo: há, entre o leitor e a narrativa, um narrador que é julgado – não só ele é um elemento constituinte da intriga, mas também é vítima do julgamento do leitor, que é levado a considerá-lo fraco, influenciável, inseguro e patologicamente ciumento. Daí à dúvida quanto ao que ele enuncia é um passo pequeno. Terceiro: “Dom Casmurro” é um livro na primeira pessoa, uma espécie de memorial de acusação, escrito pela vítima. Quarto: o narrador conversa com suas supostas leitoras e faz reflexões sobre o ato de escrever, marcando sua existência de forma indelével. Enfim, “Dom Casmurro” é uma narrativa atípica, dentro do contexto do Realismo, porque tenta retificar um acontecimento do passado e é a confissão de uma intuição que não pode ser provada empiricamente. Além disso, sua originalidade tem outro ponto a ser observado: que acusação tão débil seria a de Bento, que delega ao leitor a tarefa de completá-la a seu bel-prazer? Ou a de chegar a uma conclusão a partir de elementos que o narrador não pode controlar?
Assim, “Dom Casmurro” é uma narrativa ambígua, que se completa por intermédio de personagens ambíguos – Capitu, Escobar e mesmo Bento são cheios de nuances e não os podemos compreender de todo, talvez porque o olhar de Bento, que não se compreende, seja o de alguém que não compreende. E aí a ambigüidade é insolúvel.
A história do “Dom Casmurro” é bem conhecida: Bento Santiago, idoso, escreve sua autobiografia, descrevendo ações e reações de pessoas com quem partilhou a vida – sua mãe; José Dias, um agregado de sua casa; seus vizinhos e, principalmente, Capitu, com quem se casou; e Escobar, que conheceu no período durante o qual esteve no seminário, fruto de uma promessa de sua mãe, e que se tornou seu grande amigo. A morte de Escobar por afogamento e o episódio das lágrimas e do olhar de sua esposa para o corpo de seu amigo, no velório, deflagraram a dúvida de Bento em relação à paternidade de seu filho e o conseqüente desmoronamento de sua vida.
Mas a versão de Bento não convence o leitor, em virtude da falta de objetividade do relato, das provas baseadas apenas na sua opinião obnubilada (por exemplo, ele afirma que seu filho se parece com Escobar, mas não tendemos a aceitar isso como prova, até porque o menino, desde sempre, tem mania de imitar as pessoas e de lhes copiar os gestos) e do julgamento de sua personalidade, de que o leitor não se pode furtar.
O que há no “Dom Casmurro” que magnetiza o brasileiro? O que há em Capitu que fratura nossa confiança? O que há em Bento que não é digno de credulidade? O que há em Escobar e mesmo em Sancha que nos faz duvidar de Bento? O que há em Machado de Assis que escreve um livro que desconstrói a tradição romanesca?
Para um livro do século XIX, “Dom Casmurro” deixa perguntas demais...