sexta-feira, julho 25, 2008

Lendo Machado de Assis - 2

“É bom ser enfático, uma ou outra vez, para
compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige.”
(Bento Santiago, narrador de “Dom Casmurro”)

Nascida no final da Idade Média, a burguesia veio se fortalecendo até que, em 1789, chega ao poder na Europa. Como desdobramento disso, surge o Romantismo, cuja pauta da idealização do amor, do casamento e da mulher serviu à dominação burguesa durante a primeira metade do século XIX.
Mas, na segunda metade do século XIX, já se começa a assistir ao declínio desses valores: os temas da infelicidade conjugal e da infidelidade feminina inauguram o Realismo, quando as condições de vida do proletariado impulsionam o europeu a questionar a burguesia.
Aqui no Brasil, as três mais conhecidas obras de Machado de Assis “abrasileiram” esses temas, dando-lhes um sabor tropical e provinciano. A mais famosa das três, “Dom Casmurro”, traz o mais debatido triângulo amoroso da literatura brasileira e, como tudo relativo ao autor, é uma obra difícil de explicar e comentar.
Na Europa, o Realismo tem preferência pelo contemporâneo e, portanto, pelo sensível, ou seja, apreensível pelos sentidos. Realiza-se por meio de uma narração equilibrada, racional, competente, isenta e objetiva, na terceira pessoa. Em outras palavras: o narrador é onisciente e “carrega” o enredo de forma “invisível”, com capítulos longos, sem se envolver emocionalmente com a mensagem. Desse modo, o leitor se entrega ao narrador e deixa-se levar, não se dando conta de que alguém conta a história.
“Dom Casmurro” quebra totalmente esse tipo de narração, de várias formas: primeiro, o tempo da ação é diferente do tempo da narração – Bento, para “atar as duas pontas da vida”, sua juventude e sua velhice, conta, já velho, episódios de sua vida adulta; só que, nesse intervalo, foi acumulando mágoas e ressentimentos, o que resulta num relato emocionado de que o leitor duvida. Segundo: há, entre o leitor e a narrativa, um narrador que é julgado – não só ele é um elemento constituinte da intriga, mas também é vítima do julgamento do leitor, que é levado a considerá-lo fraco, influenciável, inseguro e patologicamente ciumento. Daí à dúvida quanto ao que ele enuncia é um passo pequeno. Terceiro: “Dom Casmurro” é um livro na primeira pessoa, uma espécie de memorial de acusação, escrito pela vítima. Quarto: o narrador conversa com suas supostas leitoras e faz reflexões sobre o ato de escrever, marcando sua existência de forma indelével. Enfim, “Dom Casmurro” é uma narrativa atípica, dentro do contexto do Realismo, porque tenta retificar um acontecimento do passado e é a confissão de uma intuição que não pode ser provada empiricamente. Além disso, sua originalidade tem outro ponto a ser observado: que acusação tão débil seria a de Bento, que delega ao leitor a tarefa de completá-la a seu bel-prazer? Ou a de chegar a uma conclusão a partir de elementos que o narrador não pode controlar?
Assim, “Dom Casmurro” é uma narrativa ambígua, que se completa por intermédio de personagens ambíguos – Capitu, Escobar e mesmo Bento são cheios de nuances e não os podemos compreender de todo, talvez porque o olhar de Bento, que não se compreende, seja o de alguém que não compreende. E aí a ambigüidade é insolúvel.
A história do “Dom Casmurro” é bem conhecida: Bento Santiago, idoso, escreve sua autobiografia, descrevendo ações e reações de pessoas com quem partilhou a vida – sua mãe; José Dias, um agregado de sua casa; seus vizinhos e, principalmente, Capitu, com quem se casou; e Escobar, que conheceu no período durante o qual esteve no seminário, fruto de uma promessa de sua mãe, e que se tornou seu grande amigo. A morte de Escobar por afogamento e o episódio das lágrimas e do olhar de sua esposa para o corpo de seu amigo, no velório, deflagraram a dúvida de Bento em relação à paternidade de seu filho e o conseqüente desmoronamento de sua vida.
Mas a versão de Bento não convence o leitor, em virtude da falta de objetividade do relato, das provas baseadas apenas na sua opinião obnubilada (por exemplo, ele afirma que seu filho se parece com Escobar, mas não tendemos a aceitar isso como prova, até porque o menino, desde sempre, tem mania de imitar as pessoas e de lhes copiar os gestos) e do julgamento de sua personalidade, de que o leitor não se pode furtar.
O que há no “Dom Casmurro” que magnetiza o brasileiro? O que há em Capitu que fratura nossa confiança? O que há em Bento que não é digno de credulidade? O que há em Escobar e mesmo em Sancha que nos faz duvidar de Bento? O que há em Machado de Assis que escreve um livro que desconstrói a tradição romanesca?
Para um livro do século XIX, “Dom Casmurro” deixa perguntas demais...

sábado, julho 19, 2008

Lendo Machado de Assis - 1

“Quanto ao século, os médicos que estavam presentes ao
parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o que agora
aparece é a cabeça do XX, outros que são os pés do XIX.
Eu sou pela cabeça, como sabe.”
(Machado de Assis)

Machado de Assis é o mais intrigante autor de nossa literatura: sua trajetória biográfica, suas idéias e, conseqüentemente, suas obras são surpreendentemente singulares, e observá-las é um aprendizado precioso.
Sua vida pode ser considerada um milagre. Nasceu pobre, filho de uma lavadeira e um pintor de paredes, e não se tem notícia de estudos regulares. Apesar disso, foi devagar escrevendo sua história difícil, aprendendo a ler aqui, aproveitando oportunidades minúsculas, lendo um livro acolá, quando foi caixeiro de livraria ou tipógrafo... Estudou latim e francês de favor... Recebeu ajuda... O que quero dizer é que soube aproveitar as chances que apareceram (penso que é muito cômodo à classe dominante achar que sair sozinho da situação de miséria e pobreza é não só possível como fácil, basta querer). E foi galgando a “escada social” brasileira que era, na época como hoje, íngreme e inóspita. Não teve que vencer apenas a origem: foi neto de escravos alforriados, o que quer dizer que era mulato, além de gago e epilético.
Numa sociedade como a nossa, marcada tão fortemente pela estratificação que já ouvi muitos referirem um “apartheid” (tomando emprestado a forte palavra da África do Sul), suplantou o “destino” social que, na época, pensava-se ser determinado pelo momento histórico, pela raça e pelo meio.
Pois bem: nada, nem a história que esta sociedade tinha reservado para ele, nem sua cor, nem sua favela de origem, nem sua doença, impediu Machado de ir ascendendo socialmente e de maneira admirável – sem quebrar valores nem ética.
Mas nada disso aconteceu de repente, por sorte: sua consagração foi um mérito que foi sendo esculpido pelo amadurecimento, pelo trabalho, pela reflexão – a história de Machado é um exemplo de tenacidade e sua fama foi antes conseqüência de um fazer que lance espetacular de cartas ou dados; só seu terceiro livro de contos e seu quinto romance começam a destacá-lo no panorama da nossa literatura.
Foi hábil observador de si próprio. Olhando-se como o fez, desconfiou da ciência de sua época e, ao contrário dos escritores europeus, relativizou as certezas do século XIX. Debruçado sobre sua própria história, questionou o mecanismo simplificador do determinismo do seu tempo e, na periferia do mundo, escreveu uma obra só explicável pelos parâmetros do século XX: a ciência do século XIX e sua visão reducionista estão na voz de dois personagens loucos de Machado, de cujas teorias simplistas sobre as questões humanas rimos. Na época, enunciavam-se teorias “científicas” para explicar tudo, desde a origem do homem até a sua evolução, ou confeccionavam-se tabelas dentro das quais “se organizavam” os seres de todas as espécies. Assim Quincas Borba pensava que as batatas ficavam para o vencedor e Simão Bacamarte achava-se capaz de discriminar o são do louco.
Ao contrário disso, Machado foi um excluído que construiu seu próprio acesso às batatas e, acima de tudo, escolheu, sem se confundir, as batatas com as quais queria ficar, pois sabia que, nas suas próprias palavras, “só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima de suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.
Enfim, também foi pertinente analista da história que se desenhava a sua volta, apesar de ter sido acusado do contrário. Só que sua avaliação foi discreta e prescindiu da oratória emotiva, preferindo as entrelinhas, o estudo das reações, a riqueza das motivações.
Na verdade, foi, aos poucos, saindo do personagem linear ou plano, típico do romantismo, para cair no problemático ou esférico e, mesmo, no pícaro, viés pouco estudado na sua obra, na minha opinião. Grandes temas do seu tempo (as mulheres infiéis, a infelicidade conjugal, a complexidade de nossa psicologia, a confrontação dos valores sociais) ganham, na obra de Machado, matizes novos e originais.
Machado aprendeu a ler. Foi leitor de si mesmo, de seu mundo e de sua época e dos livros que o ajudaram a ver-se e a ver tudo a sua volta com clareza e originalidade.
Neste tempo de subidas que desmoronam valores sociais, saber de Machado de Assis dá uma fé no indivíduo e uma certeza clara e boa na ética.