sábado, fevereiro 14, 2009

Sobre abismos

“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só
a fazer outras maiores perguntas.” (João Guimarães Rosa)

De repente, me pego pensando sobre as palavras. Já disse por aí que fico com elas no coração um tempo, olho seu significado no dicionário, vou avaliando-as como quem observa um diamante, seus ladinhos tantos... E, na escrita, guardo o que vou descobrindo.
Esses dias, duas palavras me povoaram – destino e escolha.
Os gregos antigos já disseram foi muito sobre a primeira, eles que nem sequer tinham uma palavra que significasse “livre arbítrio”. Seus oráculos traduzem, nas suas narrativas, seus medos, sua reverência, sua subordinação a essa ideia infeliz de que nada, em nosso destino, pode ser mudado.
É claro que sei ser a nossa circunstância uma espécie de destino ingovernável. Mas há sempre um espaço e um jeito dentro de qualquer prisão.
Numa das nossas mais primeiras e mais queridas narrativas, Sófocles conta a história de Édipo, que terminou, sem querer, cumprindo seu destino horrível.
Ainda nos restam resquícios dessa ideia difícil nos desvãos de nossas superstições, no poder que ainda delegamos a interpretadores de cartas, mãos, búzios e astros de saberem o que, sem remédio, nos espera. Porém não me parece que isso tem, hoje, o peso que tinha na Grécia antiga.
Também, nesse intervalo, nasceram as três grandes religiões monoteístas, erramos um tanto em nome delas e ganhamos um Deus onisciente, onipresente e onipotente que coordena tudo e todos. Além disso, Ele nos deu um presente, o livre arbítrio, que não sabemos usar. Tudo junto – injustiças, arbitrariedades, violências, fome, ignorâncias... – foi justificado, aceito, naturalizado, explicado como “a vontade de Deus”.
Desse modo, a palavra destino enfraquece, e Deus aparece com uma força sem medida. Machado de Assis transcreve essa ideia numa frase clara: “Ninguém pode decidir o que há de fazer amanhã; Deus escreve as páginas do nosso destino; nós não fazemos mais que transcrevê-las na Terra”.
Não me parece boa a ideia de que Deus escreve a nossa vida prevendo maldades para nos dar como presentes...
Então, a modernidade chega e nos traz quatro palavras cruciais: igualdade, liberdade, fraternidade e indivíduo. Ou seja, somos livres para pensar e agir e, portanto, responsáveis pelo nosso próprio destino, numa sequência de escolhas que o vão forjando. Essa ideia tem a cara do nosso tempo, que hipertrofiou o eu e a matéria e tirou Deus do centro do pensamento.
Mas, como diz Guimarães Rosa, uma coisa é arrumar as ideias; outra é lidar no diário com pessoas e suas mil e tantas misérias, mais ou menos isso: e o que constato é que escolhemos às cegas, às vezes, e só depois é que verificamos o erro – nossos medos, nossas fraquezas, nossos projetos falidos, os episódios ruins que nos atropelam ao longo da vida, nossas ignorâncias, tudo turva a nossa visão, e confunde, e dificulta...
Mesmo assim, algumas vezes, escolhemos (ou cumprimos?) nosso destino e tudo se encaixa: é quando o que devemos fazer é o que queremos fazer e, então, o rio flui no seu leito perfeitamente.
Mas, na maioria das vezes, quedamos inertes, sem saber o que é certo e melhor, mesmo que dentro da palavra escolha esteja a capacidade de escolher bem (somos inclinados naturalmente para o bem?).
Por outro lado, há também, nesse conjunto de palavras, a liberdade individual de escolher o mal. O que faz alguns de nós irem por esse caminho é um mistério, desses que nos ocupam sempre e sempre: arte, ciência, todas as áreas de nosso saber pesquisam motivos, explicações, perdões, punições... Como todos, sei pouco sobre isso: escolher o mal é perder Deus e o homem de uma vez. É perder tudo. Inclusive a liberdade. Porque o mal é uma prisão sem porta e sem janela.
A pessoa vem destinada a ser má? De quem é a responsabilidade disso, só dela? Ela é má ou doente? O mal está na sociedade? No indivíduo? Por que nossas tão necessárias relações são, ao mesmo tempo, tão difíceis? Onde mora a força dos que suplantam seu próprio destino? Ou a fraqueza dos que desistem?