domingo, março 29, 2009

Março despedaçado

Meu começo de ano foi de uma tristeza avassaladora: fui revisitada pelo abismo, a palavra que uso para as coisas humanas fundas que não consigo entender. Toda vez que isso acontece, como num pesadelo, todos os meus abismos voltam e os reavalio e comparo.

Tenho dois abismos principais: a doença que interrompeu meu filho do meio e o meu casamento; os outros abismos são menos meus, mas de todos nós. Ou seja, tenho, dentro de mim, abismos pessoais e gerais, como todas as pessoas, só que também tenho coragem (minha tia Germana diagnosticou-a como gentil e preguiçosa, com a ajuda de Guimarães Rosa) e jeito (apreciar arte me deu a ferramenta de ver tudo de uma maneira pessoal) para analisá-los e, como já disse, com medo da parábola dos talentos, falar deles (o texto está no arquivo ao lado, em janeiro de 2008).

Meu primeiro abismo é de todos o mais fundo; com ele aprendi que coisas horríveis acontecem com pessoas boas e que Deus, às vezes, não nos ouve, apesar de nossas insistências. Eu poderia não dizer essa segunda parte, mas aí ninguém teria ideia da proporção desse abismo dentro de mim.

Para resumir o que aconteceu, uso um raciocínio de Singer, sobrevivente do holocausto nazista: “Quando estou feliz, lembro o campo de concentração e concluo que não é tão bom; quando estou triste, lembro-o também e resumo que não é tão ruim". Isso mesmo me restou – desde o fato, nunca mais fui feliz, nem infeliz, só alegre, o que é mesmo diferente.

Meu segundo abismo diz respeito àquilo em que acredito e que, na prática, falhou: creio veementemente no amor, na delicadeza e, principalmente, na capacidade das pessoas de se reconstruírem noutra direção. Acreditar nisso, lutando, durante um tempo longo demais, e avaliar o desperdício foi muito doloroso. Mas esse abismo eu consegui pular, era menor. Continuo a pensar da mesma forma, só que, como uma ostra, guardei minhas pérolas e não sei se serei capaz de mostrá-las novamente; agora tenho medo.

Alguém poderia pensar que há uma incoerência entre o fato de me considerar corajosa e o medo, mas essas palavras são pertencentes – não há coragem sem medo.

Uma cirurgia que me abriu o peito e me deixou uma ferida em carne viva me fez revisitar esse último abismo, de forma transitiva direta, e a perda de um sobrinho recém-nascido, de forma transitiva indireta. Mas as cicatrizes começam a nascer...

As crônicas lindas do meu amigo Samarone costumam me inspirar e, na última, ele falou algo em torno de que somos todos do interior e que temos um imperativo de fuga, traduzido na expressão “fugir com o circo”. É verdade.

Ao ler o texto, lembrei-me de uma história hilária de nosso arquivo familiar: um dia, em Taperoá, resolvemos assistir ao espetáculo de um circo mambembe lá chegado, Gran Circo-Tourada, com hífen.

Como nosso dinheiro era pouco, arregimentamos todas as carteiras de estudante, possíveis e impossíveis, e, em alegre corso, chegamos à bilheteria:

– Meia entrada? O que é isso? – perguntou o bilheteiro.

Dá para ver o começo do esquema... Quando entramos, as arquibancadas eram, literalmente, um puleiro, difícil de explicar: havia uma espécie de cerca de pau-a-pique, com uma tora para apoiar os pés, e outra para segurar com as mãos; nela, ficamos todos em pé, num equilíbrio instável e perigoso, como o das galinhas na mesma situação, coitadas.

Os bois do título, aliás, os únicos animais do formidável e inesquecível espetáculo, tão assustados quanto nós, batiam na esquisita estrutura que, juntamente com a do circo, balançava, forjando um terremoto metafórico indescritível e ameaçador.

Todo o circo era uma gambiarra: os sapatos dos palhaços traziam uma ripa de madeira na frente, colada embaixo, provavelmente, porque o circo não tinha recursos para comprar sapatos de palhaço de verdade; as roupas eram mulambentas; a ajudante do mágico estava grávida e, bocejando de sonolenta, coçava seu ventre avantajado; os “touros” eram perebentos; e o número dos palhaços, pornográfico...

No meio do “espetáculo”, me deu vontade de chorar, com pena de tudo e com vergonha de Rafael, um amigo salvadorenho do meu irmão, que estava conosco e tinha ido visitar a cidade e o circo, como turista. Avalie...

Saímos – as três irmãs – estropiadas de temor, vergonha e pena, até porque ficamos com problemas de consciência social por ter conseguido, depois de explicações urbanas, convencer o bilheteiro a nos vender as entradas por metade do preço! E, como pudemos constatar, o circo estava abaixo da linha de pobreza e precisava de uma bolsa-escola para sobreviver.

É claro que, se eu fugisse com um circo, não seria com esse, do qual eu, antes, fugiria, com certeza, se tivesse antevisto a desgraça.

Esse circo é triste e alegre... Como a vida...

Um dia, eu li uma história da tradição popular japonesa que, talvez, me ajude a concluir esta crônica de hoje: um homem, fugindo de um leão, caiu num abismo cheio de cobras, mas conseguiu segurar-se nas pedras e raízes da parede. Sem saída, notou que, ao lado, havia um pé de morango, carregado de frutas, e, então, entre leões e cobras, pendurado, começou a saboreá-las, devagar e com prazer.

Sou assim mesmo: caí em abismos; nem sei como, curei as feridas; as cicatrizes, à flor da pele, me acompanharão... A literatura é meu morango ou meu circo, tanto faz... É com ela que, para suportar, fujo, como o personagem de “Abril despedaçado”. E compreendo.


Para Samarone Lima, de novo.