domingo, março 09, 2014

"Primeiras estórias"

"A gente cresce sempre, sem saber para onde."
(João Guimarães Rosa)
            O livro de contos "Primeiras estórias", de João Guimarães Rosa, foi publicado em 1962, seis anos depois do colosso "Grande sertão: veredas". Contém 21 histórias, arrumadas em dois grupos, separados pela narrativa "O espelho", uma espécie de "Grande sertão: veredas" condensado. O primeiro e o último conto têm o mesmo personagem em distintos e cruciais tempos de sua vida. Aliás, isso parece ser o miolo do livro – há sempre alguém num momento especial de revelação ou de compreensão de verdades quase inenarráveis, de tão puras e primitivas.
            De fato, há sempre acontecimentos inusitados ou comportamentos inexplicáveis narrados numa linguagem que tenta ser tão, tão primordial que tem que ser utilizada uma outra língua portuguesa, distinta daquela de que, cotidiana e tradicionalmente, se lança mão. Daí ser Guimarães Rosa escritor em um idioma que parece ser só dele, cheio de neologismos, arcaísmos, regionalismos, tudo misturado com palavras e estruturas sintáticas trazidas de outras línguas (mas não só, pois há também recriação), até porque ele tenta falar ou escrever sobre experiências tão fundantes, que não seria possível descrevê-las com a língua portuguesa na sua gramática tradicional. Nesse contexto, conteúdo e forma se completam para transportar o leitor para "trás" da realidade, onde dorme um sentido cheio de mistério, que existe, sem que conscientemente saibamos.
            Acontece que há um episódio que acorda esse mundo paralelo de seu sono enigmático ou mesmo metafísico e, é claro, é preciso uma espécie de mágica ou de truque na linguagem para que ela consiga descrever o acontecido e seus efeitos no mundo real.
            O contato com essas forças invisíveis e quase intraduzíveis é possível porque há pessoas ou seres diferentes, como loucos de vários matizes, crianças especiais, extraterrestres, apaixonados e sensíveis de toda sorte, que parecem viver noutra dimensão, desenvolvendo-se, ontologicamente, fora do espelho das convenções sociais e daquilo que se considera conveniente ou aceitável... Por isso o espelho do meio do livro: ele está lá, mas esses seres raros estão fora dele, revelando uma sabedoria particular ou exalando uma luz exclusiva, as quais têm o poder de desvelar às pessoas normais esse mundo conhecido, mas esquecido. Constroem eles uma espécie de ponte, no limite do impossível, e nos trazem reflexões sobre amor, convivência, tolerância, utilidade, diversidade, compaixão – “palavras” que, infelizmente, ainda não sabemos escrever... Mas o livro as escorcha, e elas se realizam no estreito lugar que lhes é possível.
            De fato, o que o autor nos diz, através dessas narrativas, é que a vida e as leis escondidas que a regem não são racionais e, portanto, não podem ser explicadas nem entendidas com o uso da lógica, mas com o da intuição. E todo o livro é uma tentativa de transportar o leitor para essa “intersecção”, esse lugar de percepção mais lúcida quando, em contato com as reminiscências perdidas, possibilitadas pelos “escolhidos”, pode-se redescobrir o cimento esquecido do amor, que une todos os homens e que pode viabilizar a sua tão difícil convivência. Só nesse instante fugaz é possível entender o sofrimento do outro, colocar-se no lugar dele, viver por ele e não contra ele, aceitar suas idiossincrasias, vê-lo sem preconceitos...   
            Platão não é coincidência: o autor sugere que esses seres especiais, embora não “apropriados” do/ao espelho, têm serventia, pois refazem as ligações perdidas entre os homens, por talvez guardarem melhor as lembranças desse mundo perfeito no qual todos os homens viveram e do qual se afastaram, em virtude do verdadeiro exílio que constitui a vida material.   
            Por isso a presença dessa língua divergente, que é como uma linguagem essencial, que mistura todas as línguas, e (quem sabe?) com a qual os homens se comunicavam antes do episódio da Torre de Babel, cujos tijolos caíram sobre todos os homens e os incapacitaram de se entenderem... As personagens não são como “todos”, são como elas mesmas; em contrapartida, meio desligadas do mundo visível, podem materializar horizontes, elaborar possibilidades ou ressignificar “o que podia ter sido e que não foi”, pegando emprestadas as palavras sabidas de Manuel Bandeira.
            “Primeiras estórias” é um livro espiritual e otimista e corajoso que, de forma delicada e respeitosa, fala de pessoas com deficiência, doenças emocionais, internamentos psiquiátricos, déficit cognitivo e de fala, psicopatias, quando nenhuma dessas palavras politicamente corretas existia...
            Só que a beleza estonteante de João Guimarães Rosa dá a toda essa discussão um alento que o politicamente correto não dá: em vez de falar em inclusão ou acessibilidade de faz de conta, ele descortina a utilidade metafísica “deles” e nos ensina que estão fora de nossos espelhos, mas são “nossos”.