Aos nossos alunos - 5
Drummond tem um soneto chamado
“A ingaia ciência” em cuja primeira estrofe ele fala da madureza como um
presente que nos tira o sabor. Ele não diz quem nos dá o presente, nem
identifica que sabor nos é subtraído, usa o substantivo “prenda” –
perigosamente próximo do verbo “prender” – e o verbo “raptar”, parecendo
iniciar o texto com o argumento de que a maturidade é algo que rapta a
juventude, a inocência e os sabores da vida.
Mas a segunda estrofe nos tira
dessa confortável e já sabida definição e, num jogo lindo de palavras, nos
desafia a pensar mais. Drummond repete a palavra “madureza”, que tinha ficado
presa nas estruturas subordinadas da primeira estrofe, e recomeça uma frase, acrescentando
que ela “vê o círculo vazio onde se estenda, e que o mundo converte numa cela”.
Ele disse, portanto, que a madureza vê o vazio em que poderia se estender, já que o modo subjuntivo é o da possibilidade
e da dúvida e não o da certeza, e acresce que é o mundo que faz dela uma cela.
E não diz “ela é uma cela”.
Aí ele entra nos tercetos e
diz pela terceira vez a palavra “madureza”, como se fosse de novo recomeçar a
conceituar: a madureza não só sabe o preço de tudo (usa uma bela metonímia,
pois não diz “tudo”, mas “amores, ócios e quebrantos”), mas ainda nada pode
contra seu próprio saber e contra si mesma. E, na última frase, afirma, noutra
metonímia linda, que o olfato e o olhar agudos e a mão, “livre de encantos, se
destroem no sonho da existência”.
A estrutura “se destroem” pode
ser lida como “são destruídos” ou como “se autodestroem”, e “sonho da
existência” nem é agente da passiva, nem é objeto direto. É apenas uma
circunstância. Pergunto: de tempo? De lugar? De modo? De condição? Há ainda, no
texto, uma mão livre de encantos. Ou seja: Drummond pensa que os encantos são
uma prisão. E que, portanto, a madureza é uma espécie de liberdade, uma janela
pela qual se pode fugir dos encantos ou dos enganos do mundo.
Pois bem: esse poema, apesar
da forma medieval do soneto, é moderno. O poeta não se pergunta mais quem nos
prendeu na madureza – se o destino, se
Deus, se a ciência... Isso não importa mais. A questão do homem moderno é outra: é o que fazer com ela, com essa surpresa que
não conseguíamos ter e que agora se nos apresenta. Duas expressões – “círculo
vazio” e “surpresa da janela” – criam metáforas de saída, de ver além de;
pode-se passar por um círculo vazio; não se pode passar por um preenchido. E,
sem vendas, pode-se ver surpresas na janela, pode-se ver o novo, pode-se ver a
complexidade de sentidos na qual vivemos. Nesse contexto, poderíamos, com as
possibilidades e a força de nossa linguagem e dos nossos meios de comunicação,
buscar entendimentos. Mas o que temos é mais meios e canais para expressar
nossos preconceitos; o que temos é a desqualificação do ensino da língua; o que
temos é a língua servindo para vender e não para entender, explicar, acatar, tolerar...
Diferentemente de Drummond, a
maioria de nós (que hoje tanto vivemos) caiu na armadilha da simplificação e da
falta de conteúdo. Nunca vivemos tanto, nunca tivemos tantos meios de
comunicação tão eficientes e tão baratos... Neles nunca tivemos tantos caminhos
e lugares de comunicação e de agregação... E nunca temos o que dizer que,
realmente, faça progredir nossa tolerância e pluralizar nossos conceitos...
Esses caminhos e lugares transformaram-se em armadilhas, torres de babel,
labirintos, interdições... São caixas de ressonância de nós mesmos... Todos dizem
ou a mesma coisa ou pensam dentro da lógica bipolar, ou seja, o que eu penso
está certo; quem não pensa como eu está errado. Ninguém quer olhar através da
janela, através do círculo vazio, todos ficam dentro das prisões do mundo, como
diz Drummond.
É aqui que o poema de Drummond
dialoga com Nietzsche, que pensava que se deve apagar, com crueldade, o que se
torna velho em nós; e isso não conseguimos fazer. Nossos fabulosos meios de
comunicação amplificam nossos preconceitos e intolerâncias. Ou apenas nos
enviam mensagens de compras desnecessárias. Estamos todos presos dentro desse
mundo não só infantil, falsamente fácil e feliz, mas também sem sentido.
Os efeitos discursivos do
poema de Drummond que estamos analisando não estão na forma (pois o autor
mantém a estrofação, a métrica e a rima
da tradição), mas na sintaxe, na pontuação e na sonoridade oclusiva e
consonantal, que criam uma atmosfera desconcertante, como a dessa modernidade
que tanto nos prometia e que nos ofertou um conjunto vazio de coisas sem
sentido nenhum. Nunca fomos tão ricos, tão conectados, tão infelizes e tão
sozinhos!
Minha madureza é um privilégio
que poucos têm, sou como o deus Jano, que nos ajudou a dar nome a “janeiro”, o
mês que tem uma face virada para o ano novo e outra virada para o velho: com uma
de minhas faces, vi a madureza chegar devagar e depressa; diante da outra face
estão os meus alunos aos quais posso falar.
Vocês estão começando a vida.
Não caiam nessas armadilhas da simplificação, da repetição. A leitura literária
é mais que um prazer simples que parece poder ser substituído por outro
qualquer, como beber em excesso e escutar música tão alto, que não se pode
conversar; é mais que a escrita da aventura, é mais que fuga, escapismo ou
evasão. É uma experiência de entendimento do outro, de exploração da
diversidade e da criação de possibilidades de se reconhecer no outro. Não há
paz possível entre nós e em nós se não tivermos acesso a essa “mágica
complementar”, como diz Contardo Caligaris, a qual nos proporcionou, ao longo
de nossa História, não só ver de vários ângulos, mas também desenhar e
redesenhar nossos horizontes e nossas utopias, democratizar a alfabetização e
ampliar o acesso aos livros e, consequentemente, a novas e surpreendentes
ideias e conceitos.
Esse mundo que nos aprisiona
no hedonismo sem limite, que nos prende a sonhos individuais e materiais, que resume
nossa escuta e nossa fala reflexiva, que só nos permite dizer o que já foi dito
ou que nos faz dizer apenas o que deve ser dito não é bom.
Convido-os a ler, a pensar por
si próprios, a ter coragem para negociar a sua diferença com a do outro, a
parar para ver a si próprio, a aprender a estar consigo mesmo a fim de não se
perder e, por fim, a construir sonhos coletivos...
A leitura literária é um ato
de resistência a esse projeto perigoso de superficialidade, de uniformização e
de futilidade por que estamos passando. Estamos sendo convidados a nos
anestesiar com drogas de muitas espécies para não pensarmos em saídas, em
perdões, em diálogos... Essa solidão estrutural que nos cerca... É porque
estamos indo no caminho errado. Esse barulho que nos cerca... É porque não
queremos ouvir o outro. Essa falta de conteúdo... É porque não estamos pensando
por nós mesmos. Precisamos de um ajuste de rota.
No seu poema difícil, Drummond
assinala a ciência triste da madureza. Eu não acho que minha ciência é triste,
só difícil de escutar: o sentido da vida existe e está nas nossas relações,
está no esforço do afeto, está na criação que cada um tenta fazer de sua
própria utilidade; está, enfim, na tentativa de realização do sonho de
seguirmos de mãos dadas, como Drummond disse em outro poema. No rumo de um
mundo “sem a injustiça dos prêmios”, como disse Drummond em outro poema
original. “Isso são utopias”, pode-se pensar. Mas minha última ciência é que é
mortal abandoná-las.