Democracia e outros desacertos brasileiros
Já falei de
democracia, há alguns anos, neste blog, quando ele sofreu sistemática invasão
de uma pessoa que me atingia profissional e pessoalmente com comentários
anônimos. Hoje, volto ao assunto para defender Raduan Nassar, quando da outorga
do prêmio Camões com que foi agraciado em maio de 2016.
Raduan
Nassar é um escritor pouco profícuo, mas a densidade de sua obra alcançou a
admiração de milhares de pessoas, inclusive do júri do concurso, que destacou “a
extraordinária qualidade de sua linguagem e a força poética de sua prosa”. É
evidente que um escritor com a sua profundidade intelectual não fala sobre o
que todos querem ouvir – ele fala sobre o que quer, sobre o que é preciso, ou
mesmo não fala, como, de resto, é o que acontece na maior parte do tempo com
ele próprio: vive numa fazenda, no interior de São Paulo, muito recluso, o que,
no seu caso, não significa omisso.
É que
há algum tempo doou outra fazenda ao Estado brasileiro, com a única exigência
de que fosse usada para fazer um campus
agrícola em que se estudassem técnicas de cultivo sustentáveis das lavouras da
região. Essa doação, na verdade, mudou o entorno social da área, dando
oportunidades de ensino superior a filhos de trabalhadores rurais e até a
índios, que estão “fazendo a diferença” quando se observa a questão do acesso à
renda naquela parte do país.
Lembrando Paulo
Freire, que certa vez disse que a pobreza rural tinha ligação não só com a
falta de acesso à terra, mas também com outros “arames farpados”, como a falta
de acesso à técnica, não posso deixar de admirar o que, sob a batuta de Raduan,
está se fazendo naquela região.
Compreende-se,
perfeitamente, a partir dessa narrativa, de que lado o escritor se encontra:
ele é a favor de melhor distribuição de terra, de renda, de conhecimento e de
técnica no Brasil e no mundo. E seu posicionamento não fica apenas no discurso:
estende-se à ação coerente e corajosa de quem é capaz de tirar da própria carne
para ver mais igualdade ao redor.
Pois bem: aos
quase 82 anos, lúcido e tímido como poucos, no dia da entrega do prêmio,
denunciou a situação sombria em que o Brasil está, na sua opinião: invasão de
espaços, repressão e prisão dos mais fracos, violência contra manifestações
populares, supressão de direitos, ameaça a universidades públicas e escolas,
tudo com a anuência de instituições que deveriam resguardar o direito e o bem de
todos.
Acusado de
histriônico, foi, na verdade, discreto, tanto nos gestos quanto nos trajes.
Mostrou-se, no entanto, contundente nas palavras, como acontece com a maioria
dos escritores, cidadãos que dizem o que tem de ser dito, possa parte da
população ouvir ou não. Confesso que admiro o “conjunto da obra”, como muito se
tem dito – gostei do que ele fez, democratizando o tanto de tecido social que
estava a seu alcance, e mais ainda admirei o fato de ele ter enunciado no
discurso o que já havia realizado na prática. Não é todo dia que a gente
testemunha coerência neste país...
Tenho
conversado muito com meus alunos sobre a função do escritor neste mundo globalizado,
que enxerga tudo através da técnica e da ciência, em detrimento das ciências
humanas, ou nesses tempos cegos e difíceis que nos couberam (como acontece com
todos os seres humanos, no fim das contas) e agradeci as palavras de Raduan
Nassar – ele falou o que precisava falar ou o que quis falar, independentemente
do que algumas pessoas ou o governo queriam ouvir; tornou audíveis as palavras
de quem também está nas ruas, mas não sai nas manchetes; criticou instituições,
como se costuma fazer, impunemente, numa democracia orgulhosa do que é; usou um
momento de exposição pública para colocar sua posição política clara e
coerentemente; como cidadão, agiu de forma legítima, pois qualquer um pode
expor seus pontos de vista no Brasil, inclusive quem não tem o que dizer ou
quem espalha preconceito, desavença e ódio. Não é o caso de Raduan Nassar, cuja
lucidez merece atenção, cuja idade merece respeito e cuja biografia legitima
seu direito imperioso de expressão.
Além disso, não
foi o governo que o premiou; foi o Estado de Portugal e foi o Estado do Brasil.
Portanto, o argumento de que ele não deveria ter aceitado o prêmio, já que
tinha críticas ao governo, além de deselegante, é estapafúrdio e, infelizmente,
confirma o que ele falou. Ou seja: que pairam ameaças, hoje, ao Estado de
Direito no país.
Não há defesa
possível contra as palavras de ministros e de outros cidadãos que o acusaram,
durante a cerimônia ou depois dela, de
expressar pontos de vista partidários os quais, mesmo que tivessem sido
enunciados, ainda assim poderiam ter sido externados. Mas é mais ridículo ainda
imaginar que não fossem seus de verdade: seu estofo intelectual e sua
trajetória coerente garantem a exclusividade de suas interpretações e de sua
visão de mundo.
Obrigada,
Raduan Nassar. Você me fez pensar na democracia que quero, no país com que
sonho, na função do escritor em tempos de cólera e de cegueira, no próximo mais
fraco e naquilo de que, realmente, preciso para ser uma pessoa de verdade.
Obrigada também ao resto das pessoas que me mostram que, como disse o escritor,
“não há como ficar calado”.