quarta-feira, fevereiro 21, 2018

"Os Sertões", de Euclides da Cunha



Em virtude do programa do vestibular seriado da UPE, começo minhas aulas do terceiro ano do ensino médio tendo que conversar com meus alunos sobre o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que abre o Pré-modernismo, aqui no Brasil. Embora eu fique imaginando como deve ser estranho para os meus alunos ouvir falar de questões tão distantes de sua atual realidade mental, confesso que gosto de provocá-los e de pensar que participo um pouquinho da apresentação de fatos que ajudam a compreender os problemas do país e vislumbrar saídas. Mais do que tudo, acho que tenho que explicar com calma a eles que a guerra de Canudos não é, de jeito nenhum, uma realidade distante de nós. Na verdade, não dá para pensar o país sem lançar mão desse livro colossal – está tudo lá, ou estamos ainda lá.
“Os Sertões” chegou às livrarias em dezembro de 1902, cinco anos depois do fim do conflito que o gerou. Publicado pela editora carioca Laemmert, alcançou êxito imediato de público e de crítica. Já teve mais de 50 edições em português e foi traduzido em mais de 10 idiomas. Resultou da cobertura jornalística do conflito de Canudos, feita por Euclides para o jornal “O Estado de São Paulo”. O autor testemunhou os últimos meses da guerra (entre setembro e outubro de 1897), tendo participado da quarta e última expedição que dizimou Canudos sumariamente. Graças a ele, temos ideia hoje da real fisionomia dessa guerra: uma campanha de extermínio inaceitável, mesmo naquele violento final do século XIX, no violento país que acabava de sair do violento período da escravidão.
O problema talvez tenha aí seu ponto de partida: a abolição incompleta que foi arquitetada aqui no Brasil. Ou seja: os escravos restaram sem inserção, pois não houve reforma agrária, nem ampliação do acesso à educação no país; ficaram à margem da economia e, consequentemente, da sociedade. Nesse contexto, retirantes de seca, escravos fugidos, sem-terras, ex-escravos desempregados, isto é, excluídos de toda sorte começaram a se aboletar numa espécie de fazenda abandonada no sertão da Bahia e, liderados por Antônio Vicente Mendes Maciel, terminaram por fundar uma cidade marginal chamada Belo Monte, às margens do rio Vaza-Barris. Esse, digamos, acampamento começou a ameaçar a ordem política vigente na época, e algumas escaramuças surgiram; a primeira, em virtude de uma serraria não ter entregado aos sertanejos a madeira já paga com que eles pretendiam fazer uma igreja nova. A guerra toda durou quase um ano (de novembro de 1896 a outubro de 1897) e trucidou 5 mil soldados e entre 10 e 25 mil sertanejos, não há como saber ao certo.
Esta semana alguns episódios me fizeram lembrar o livro: um recado numa faixa que os habitantes da Rocinha mandaram para o STF (“Se prender Lula, o morro vai descer”); a solução para o problema da violência, proposta por um dos candidatos a presidente nas próximas eleições (metralhar as favelas); e a possibilidade de uma intervenção militar no Rio de Janeiro.
Para entender a relação entre os episódios, é preciso explicar devagar o que foi Canudos: uma guerra civil entre o que Euclides chamou de dois “Brasis” – um litorâneo e outro interiorano. De acordo com ele, o primeiro se ombreava com os países da Europa e tinha acesso à cidadania possível tanto lá como cá; o segundo era constituído de excluídos, como se diz hoje, ou de “brasileiros mais estrangeiros no Brasil do que os imigrantes da Europa”, como ele disse, já que não dispunha do conceito e da palavra atuais. Euclides tinha estudado engenharia na universidade determinista de seu tempo e, pago por um jornal carioca, serviu de correspondente da guerra. Saiu do Rio de Janeiro crente que ia ver uma realidade. Mas viu outra. Do morro da Favela, de onde testemunhou a luta na planície à sua frente, enviou para o jornal os primeiros textos acerca do fato. Depois da destruição do arraial, lutou cinco anos com as palavras e as ideias de seu tempo (lembro que já li alguém dizer que elas constituíram uma verdadeira camisa de varas para Euclides) e terminou por escrever uma das obras fundamentais da nossa inteligência – um texto com que um brasileiro descobriu o Brasil e registrou-o, ultrapassando o jeito de pensar europeu: feito muitos cariocas, Euclides interpretava o episódio como uma revolta monarquista que queria atrasar o Brasil; mas, ao chegar lá, o que viu foi um problema político e social e uma população que desmentia tudo o que aprendera. Em outras palavras: embora aquela população pertencesse a uma “raça inferior”, na verdade, resistia heroicamente às investidas do exército e sobrevivia sem o Estado e sem a Igreja, num ambiente inóspito. Repousa aí exatamente a questão central do arraial e da região que o continha: essas instituições, que deveriam garantir uma assistência mínima àquela população, estavam concentradas na região sudeste e, na verdade, tinham-na abandonado à sua própria sorte. Ou melhor: tinham não só esquecido aquela população mas também estavam ali fortemente armadas atirando contra ela. A indignação de Euclides ao longo de seu texto traduz muita coisa, mas, principalmente, a violência contra o diferente e mais fraco.
O que temos hoje a ver com isso? Simplesmente, tudo.
Ao longo do século XX, a população do campo veio para as grandes cidades do litoral e se instalou nas favelas, uma verdadeira remontagem do arraial de Canudos sob nossos olhos coniventes. A ligação é tão forte, que a palavra “cortiço”, usada no final do século XIX, foi trocada por “favela”, aquela que vinha da pena de Euclides quando identificava o lugar de onde observou o conflito naquele distante e próximo 1897. Sem possibilidades de inserção e excluída dos serviços básicos do estado, essa população – agora urbana – constitui ainda um segundo país e precisa de ferramentas de cidadania, como escolas e profissionalização, bancos, projetos políticos inclusivos de saúde e de proteção ou segurança, como nós outros brasileiros. Entretanto continuamos cometendo contra ela o mesmo erro lá do final do século XIX: armados até os dentes – o que inclui o coração –, fazemos invasões e intervenções preconceituosas e brutais que tentam calar sua voz que, como pode, exige ser ouvida.
Cada assalto que se encena nas nossas atuais cidades nada mais é do que a atualização desse conflito entre dois “Brasis” que não acertam a caminhar juntos: a polícia e, às vezes, o próprio exército continuam a fazer o papel de atirar em uns a mando dos outros, tudo temperado com preconceito, ignorância e interesses escusos em manter o status quo estapafúrdio de conservar um país inteiro para usufruto de apenas 10% de sua população.
É difícil viver num país tão cheio de contradições. Mais difícil ainda quando, ao pensar nelas, colocamos sexo, cor e classe nas ideias. Mais difícil ainda quando resolvemos usar armas e não palavras nos enfrentamentos...
Mia Couto talvez me ajude a terminar este texto aflito de hoje: no seu livro “A confissão da leoa”, ele trabalha os efeitos nefastos do processo colonial que vitimou seu país e o nosso e diz, corajosamente, que costumamos responsabilizar “os de fora” pelos nossos problemas e não enfrentamos as questões “de dentro”. Encaremos: somos um país com um povo cortado dentro, temos sequelas daquela divisão colonial que nos separava entre senhores e escravos. Está mais do que na hora de nos ouvirmos uns aos outros. Quando há circulação de palavras, o sangue deixa de correr. A palavra dita, buscada, escrita, sonhada, desejada, ouvida, partilhada... é, como diz Mia Couto, a única roupa que temos contra a violência com a qual insistimos em viver e que nos vitima cotidianamente. Basta de repetir erros que já cometemos no passado, por preguiça de ler e discutir com respeito e profundidade. E de achar que manchetes simplórias dão conta de nossas complexidades. Somos seres com passado, inescapavelmente, e precisamos ir na direção de um futuro que fale a língua da tolerância, um idioma que só pode ser inventado quando o exercício da palavra tomar o lugar das armas.